19/01/2021
Sobre a necessidade de um derrame de lúcida percepção
O: Pela observação passiva não
reativa, fica cada vez mais claro que o conteúdo do fluxo mecânico é não
solicitado do imaginal sensorial condicionado, é memória projetada. Quanto mais
se instala esse poder de observação, se instala também uma facilidade de
recusar qualquer impulso emotivo reativo criado por essas memórias projetadas. Surge
a percepção de que toda ideia que parte do fluxo, sempre é limitada, portanto,
só pode sustentar um modo de viver em limitação. Com o amadurecimento da
observação, surge também um poder de não se identificar e alimentar os fluxos de
somatizações psíquicas como, por exemplo, a ansiedade. Surge um novo poder de
desengatilhar as histórias do fluxo, bem como as somatizações psíquicas, um
poder de não mais se identificar com qualquer enredo do imaginal sensorial
condicionado, pois os enredos são percebidos como totalmente desconexos.
F: Sim, desconexos, mesmo sendo
memória. Percebo aqui, que na etapa mais avançada do processo de
descondicionamento, a situação fica bem complexa. Isso porque sempre vivemos
seguindo uma espécie de padrão social, um cronograma, uma rotina etc. Não estou
dizendo que não haja rotina, mas digo que nesse ponto em que estamos, onde
aceitamos viver sem nada saber, numa base de “não sei”, se deve ao fato de
percebermos que a observação só diz respeito ao agora, ao que acontece no
momento presente. A maioria — e foi nosso caso também —, foi condicionado por
um sistema cultural que força olhar a vida através da nossa história, através
da tradição, e através da história pessoal e da tradição, tentar arrumar isso
ou algo do tipo, e para isso, a observação não funciona, visto que ela pega o
pensamento-emoção que está aqui e agora. A observação também não pode pegar o
futuro, assim ela tira qualquer possibilidade de um vir-a-ser virtuoso, arrança
os planos, os planejamentos autocentrados, os quais também são partes da condicionada
estrutura cultural a que estávamos acostumados…
O: E pelo amadurecimento da
observação passiva, fica também evidente a percepção da necessidade do
surgimento de um poder maior de percepção impessoal.
F: Sim... A necessidade de algo
mais inteligente que o fluxo mecânico e não solicitado do imaginal sensorial,
bem como da lógica e da razão condicionadas.
O: Fica claro também que o fluxo
é sempre reativo e separatista. Ele justifica seus impulsos com o conteúdo do
modo de viver do passado, se estruturando no que adquiriu através da leitura,
dos lugares por onde passou, no que ouviu ou viu sem o devido questionamento.
F: Isso, mas de uma forma bem
bagunçada.
O: Sim, no fluxo, não há clareza,
não há lucidez, só há impulso para um viver estruturado no cálculo
autocentrado. O fluxo do imaginal sensorial condicionado, não produz uma percepção
convicta e impessoal.
F: Me parece um fato.
O: O imaginal, por estar
condicionado ao passado, não tem o poder da criatividade genuína, não tem o
poder de manifestar o que ainda se encontra não manifesto. Por isso nos vemos
como que parados, sem um real sentido de ação ou, o que ocorre na maior parte
das vezes, nos força a reviver um conhecido que já cumpriu sua parte ou que se
mostrou insatisfatório.
F: Vejo isso aqui, na própria experiência.
Percebo que ocorre uma nova capacidade de ver os sentidos de forma crua. Vai
surgindo uma capacidade maior de perceber as coisas cruas, como elas são. Vejo
isso claramente, por exemplo, na escuta de algum som: o som que é ouvido, nada
tem a ver com a interpretação trazida pelo imaginal condicionado; escutamos algo
que nada tem a ver com as imagens e os conceitos trazidos pelo imaginal.
O: Entendo, não escutamos,
digamos assim, sem a interferência das palavras e símbolos.
F: Percebo que neste momento do
processo, algo novo está ocorrendo aqui. Para mim, de certa forma, o imaginal parece
que nunca vai mudar, que ele vai continuar em suas variantes de loopings
desconexos, apenas com algumas variáveis extras.
O: Tenha cuidado para não
levantar conclusões, senão continuamos a alimentar certezas incertas.
F: Ok... Pelo que vejo até aqui.
O: Até aqui, o imaginal se mostra
condicionado ao passado.
F: Estou dizendo que percebo que
é perda de energia, olhar tanto para o imaginal, e permanecer antenado aos seus
conteúdos desconexos.
O: O conteúdo do imaginal é
passado e é desconexo. Isso está claro. Não estamos obcecados em analisar seu
conteúdo
F: Sim, é percebido sem sentido
real. O grande lance que vem ocorrendo aqui, é ir olhando para os sentidos crus,
o que está ocorrendo sem qualquer tipo de esforço.
O: Observe melhor se seus
sentidos estão realmente crus. Veja se não é mais um dos truques do imaginal,
fazendo você imaginar que os está vendo de modo cru.
F: Não, não estão! Não estou
dizendo isso. Disse que estão sendo observados em sua sequência, sem esforço.
O: Não seria mais correto dizer que
você está observando como os sentidos se encontram condicionados, sem qualquer
esforço para descondicioná-los?
F: Ok. Vou lhe dar um exemplo... Qualquer
barulho que aparece, você pode ouvir um barulho, shhsh... shhsh... ou sei lá...
Isso é o mais cru que você chega... O conceito, a medição, a rotulagem, são
adicionados pelo imaginal, após a escuta do som.
O: Isso já está por demais claro:
o imaginal reage com a carga do fluxo do passado.
F: O que estou dizendo, é que tem
o barulho, o som da coisa, e o imaginal, posterior a percepção, dizendo o que é.
O: O imaginal reage ao que foi sentido,
com o impulso dos conceitos.
F: Tem uma lacuna entre a
percepção e o impulso mecânico de conceituar.
O: Toda experiência parece sempre
ser adulterada pelo conceitual, que é passado.
F: Não estou dizendo que a
percepção sensorial esteja limpa, mas, de alguma forma, a observação está indo
para esses detalhes mais sutis.
O: Enquanto há a interferência do
fluxo mecânico e não solicitado, inevitavelmente, a percepção sensorial estará
fragmentada.
F: Sempre haverá fluxo. Parece
que só naquele estado que vivi muito rapidamente, me parece não haver percepção
sensorial fragmentada.
O: Enquanto percebemos com uma
mente condicionada, percebemos com a fragmentação do fluxo conceitual. Já no “estado
incondicionado de ser” não há fluxo, não há necessidade de fixar conceitos. Você
sabe o que digo, pois também já teve amostras grátis desse estado que a mente
não entende, que não sabe como descrever, como fixar uma imagem conceitual.
F: Sim, ali não tem nada disso...
Nem me lembre dessa experiência... Isso é foda! Na segunda experiência que
tive, que durou um pouco mais, me dá até raiva de ter saído daquilo... Pra ser
sincero, tenho que rir!
O: Como nesse estado, não ocorre
a interferência do fluxo, a mente não consegue conceituar.
F: Não sabe como; impossível de
traduzir na nossa linguagem. Da primeira vez foi um estalo, um som que a coisa estava
lá no bico do gavião no mais alto do céu azul. Ali, havia o que chamo por sentido
cru... Só ali vivi isso!
F: Ontem fiz um lance de louco...
Se você observar bem, perceberá que de vinte pensamentos que surgem no cabeção,
apenas quatro ou cinco não são autocentrados... 75% dos conteúdos do fluxo, é
tudo referente ao eu, ao mim, à própria pessoa. Só mesmo um choque na cabeça para
mudar isso. Mesmo sabendo de tudo isso, o fluxo mecânico e não solicitado
prossegue em seus loopings desconexos e sem sentido real... A coisa segue! Mas
também percebo que há uma inteligência agindo em nós, que nos possibilita ver
tudo isso, mas que ainda não é capaz de dissolver esse fluxo por demais
estruturado.
O: Observe bem: a maior parte é
pessoal, o resto é sobre outras pessoas, portanto, sempre pessoal. Esse modo de
perceber influenciado pelo fluxo — que é passado projetado —, não produz,
digamos assim, uma “libertária percepção convicta”.
F: Trace uma linha num papel aí...
Foi o que fiz ontem... E vá colocando de um lado os pensamentos referentes a
própria pessoa e, do outro lado, só os não pessoais, os absurdos... Você
perceberá que mais de 70% do que surge no imaginal, é tudo pessoal, tudo autocentrados,
mas todos são sem sentidos, todos!
O: O pensamento, na sua atual estruturação,
é sempre autocentrado. Estão estruturados nos conceitos adquiridos e nas
experiencias, quase sempre vividas de modo incompleto. Por isso são pessoais,
mesmo quando parecem assim não ser. Veja, por exemplo, como o pensamento está
viciado na medição, como ele está sempre traçando linhas e formulando estatísticas,
porcentagens e gráficos para tentar compreender algo de melhor modo. O pensamento
na sua atual estruturação, é sempre autocentrado.
F: Já percebi isso!... 75%, os
25% restantes, não passam de absurdos, tipo blá-blá-blá sobre o Bolsonaro, o
Dória, o risco de uma nova bomba nuclear, os dados sobre a Covid, os dinossauros,
etc, etc. Tudo desconexo, nada a ver com a realidade do momento. O que eu falo
é que mesmo a observação tendo pego isso, o que é muito difícil de ver, o fluxo
segue seu fluxo ilógico, irreal, abstrato... A melhor palavra que tenho para
descrever a qualidade do fluxo do imaginal condicionado, é que ele é “estéril”...
é “estéril”. Ele é como o vento e segue em seus loopings desconexos... Percebo
que é preciso a manifestação de um choque, a ação de alguma coisa que o fluxo
não consegue captar, pois, mesmo com a melhor das qualidades da observação, o
fluxo não para.
O: Aqui você está chegando no que
venho dizendo há tempos... Você chegou na mesma percepção: pode ficar com a
medição que quiser quanto o fluxo do imaginal, tentar compreender o
funcionamento de sua estrutura, como é e
como não é... Isso é como ficar pisando na merda e estudado seu cheiro... Tem
que ocorrer algo que faça com que saiamos do lugar onde está a merda... Tem que
ter um derrame de lucidez, pois, nos falta lucidez. Tem que ocorrer algo que
não sabemos o que é, mas que possibilite uma percepção sem a influência do
fluxo condicionado.
F: Eu vejo que só por aí mesmo, algo
precisa rolar, mais ou menos isso mesmo... Algo que não sabemos. No entanto,
pela ação da observação passiva não reativa, o fluxo vem incomodando cada vez
menos. No entanto, sempre surge a pergunta: Por que o fluxo não para? Esse é o
ponto em que me encontro, na percepção da necessidade da ocorrência de “algo
desconhecido”, com um poder para deter a adulterante mecanicidade do fluxo do
imaginal, que nos possibilite um novo modo de viver, um libertário conhecimento
de como viver neste mundo, onde percebo que, como diz o poeta, “as pessoas
enlouquecem calmamente, viciosamente, sem prazer”. Pude perceber claramente isso
ontem, no meu local de trabalho. Não que eu realmente me importe com isso... A
estrutura aqui, com relação a isso, não sente nada! Essa pandemia escancarou a
qualidade da estrutura psicológica das pessoas. Todos se encontram ansiosos, e
muitos em depressão... A coisa escancarou. O que é percebido é que ficar
olhando para o imaginal e suas atividades, não faz sentido nenhum.
O: Não é bem assim! De fato, não
tem sentido querer encontrar algo diferente ali, mas, olhar seriamente para o
fluxo do imaginal, fez todo sentido para que pudéssemos chegar na atual
qualidade de percepção que não mais se identifica com o conteúdo mecânico do
imaginal. Isso seria o mesmo que dizer que não faz sentido o uso da chupeta e
da mamadeira no início do processo do viver humano. No entanto, não tem sentido
querer encontrar algo diferente ali.
F: Exato!
O: O início da observação teve o
mesmo propósito que o “inventário moral” sugerido nos princípios das irmandades
anônimos, inventário que está sempre em relação com o passado. Neste momento
atual do processo de descondicionamento, há uma lúcida percepção de que nada
disso faz sentido, visto que isso só tem o poder de nos manter presos no
passado... O passado agora é visto como passado, o que faz sentido é olhar o
momento, olhar o que há aqui e agora; a busca do vir-a-ser, que é um imaginado
movimento em direção a um futuro com base nos passados conceitos de virtude,
não faz mais sentido algum.
F: É isso ai, Out! É bem isso que
percebo aqui!
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