28/01/2021

Não há prática que leve ao incondicionado estado de ser

O: Bom dia! Outro detalhe percebido é que além de identificar no ato a entrada das imagens do fluxo, é identificado também de onde essas imagens foram adquiridas, de quais experiências, leituras ou instituições. Essa identificação traz de instantâneo, a certeza de que por meio do conteúdo da memória, que é passado, não pode haver percepção libertária no presente momento, ou seja, que pela memória, não se dá o derrame de lucidez. Você percebe também, mesmo enquanto dorme, como que o imaginal corre solto como sonhos, se mostrando ainda mais desconexo do que quando em estado de vigília; isso é o que venho chamando de sono lúcido. Essas percepções quase que simultâneas da manifestação do fluxo, desacreditam de imediato o conteúdo do mesmo. Isso traz o sentimento que aponta para a possibilidade de que você mesmo, de fato, pode ser o senhor do seu destino, e não mais o desconexo conteúdo do fluxo com seus impulsos emotivos reativos com base no medo. Em outras palavras, tal qualidade de inventário relâmpago, quanto ao que se passa tanto no interno quanto no externo, vai nos colocando cada vez mais num contato consciente com tudo que é.

F: Algo semelhante acontece aqui!

O: Isso vai trazendo um viver que não se importa mais com os erros do passado, muito menos com o que possa acontecer no futuro, mesmo que esse futuro diga respeito ao dia seguinte, fazendo com que nossa dedicação fique centrada na qualidade do que vivemos aqui e agora. Nem mesmo a preocupação com o que ocorrerá na sequência do próprio dia, em questões de minutos ou horas, toma conta do nosso estado de ser, pois só o presente momento é visto como morada da realidade. Você vai percebendo também que, por meio da observação, vamos nos descondicionando da identificação emotiva reativa com base no medo e que, por meio desse descondicionamento, uma qualidade de lucidez vai se instalando. Então, naquilo que participamos, uma nova qualidade de responsabilidade vai ser instalando, uma responsabilidade que não carrega o velho peso que sentíamos quando nos víamos enredados na mesma. A própria palavra responsabilidade já não é mais vista com peso ou motivo de orgulho.

F: Entendo.

O: Um novo senso de participação e colaboração se instala, quando nos tornamos conscientes da real necessidade de participação e colaboração. Também fica mais fácil dizer não, quando é percebido não ser necessárias tais ações de nossa parte. As projeções mentais, não duram mais que alguns poucos segundos, portanto, não elas não possuem mais o poder de adulterante enredamento. Isso desmonta a compulsão pelo pensar compulsivamente.

F: A observação faz o serviço de ver o que antes não era óbvio, de ver o movimento desconexo, cujo conteúdo é completamente falso; na maior parte do tempo ele nem ao menos está ligado ao que rola aqui e agora. Vendo isso, é como que se fosse feito uma rápida eliminação no próprio conteúdo, algo como que um abandono da televisão mental e, de alguma forma, a atenção é liberada do fluxo mecânico e não solicitado. Então, o imaginal entra com a última tentativa de identificação, por meio de um conteúdo mais refinado, que é colocar a imagem de que um estado incondicionado chegará “no próximo momento,” ou que “se o fluxo parar o estado incondicionado chegará”. Não entro no mérito se isso irá acontecer ou não; entro no looping de que o imaginal quer seu próprio fim, o que me parece ser a sua exaltação suprema... Bummmmmm!!! Então, o que temos de real, é a percepção de que a observação nos leva a percepção de todo o conteúdo condicionado, de todo mecanismo da estrutura. Isso é o que ela faz.

O: Sim, ocorre a percepção do novo condicionamento de "ter que ter" o fim do fluxo.

F: O que nos cabe mesmo é observar esse fluxo, sem muito detalhamento ou análise do próprio conteúdo... é só ver o carnaval passar... a banda. O fluxo passar. A meu ver, esse é o principal ponto: A percepção total da estrutura condicionada.

O: Se essa percepção ocorre detalhadamente ou não, penso que isso não importa. Dizer que a observação deve ser detalhada ou superficial, para mim, seria outra forma sutil de condicionamento.

F: Aquilo que tivemos como amostra grátis, a meu ver, precisamos mesmo falar daquilo, pois é algo que existe de fato, algo que sentimos diretamente, que não chegou por causa alguma, por esforço algum, por nenhum cálculo, por nenhuma prática, algo que não podemos buscar, mas que existe... Não foi delírio, foi sentido com cada célula do nosso corpo.

O: Penso que falar daquilo que não foi visto de modo completo, não faz sentido. Falar disso só serve para acrescentar ainda mais gás para o imaginal de quem lê ou escuta sobre aquilo.

F: Então chegamos na observação pura, que é a percepção relâmpago do fluxo e seu conteúdo falso, sem que essa própria observação seja um meio para atingir o estado incondicionado, pois o mesmo não pode ser alcançado, aparentemente, por nada condicionado. O que temos em mãos, é a observação do mecanismo da estrutura, como ela funciona, como ocorre a identificação ilusória, como os impulsos emotivo reativos explodem... Talvez seja esse o tal do autoconhecimento, da meditação, do olhar o movimento do eu, etc., etc., etc. É bem provável que seja isso a conscientização. Fiquei pensando nisso ontem, pois é o máximo que dá para fazer. Então, percebo que aqui entra um outro ponto, o qual percebi quando você falou que ia sair para fazer uma caminhada... Veja, se algo tiver que rolar, vai rolar, seja lá na caminhada, ou sentado no sofá da sala. A possibilidade está inclusa em qualquer circunstância, pois aquilo surge quando quer e onde quer, não existem condições pré-estabelecidas para o seu surgimento.

O: Sim, todo esse lance da necessidade de desenvolvimento, de crescimento do espírito, de reparações, rogas e preces, contorcionismo físicos e nutricionais, tudo isso são conteúdos provenientes de mentes ainda condicionadas, e que só podem ser aceitos, quando não são devidamente questionados e observados.

F: O que nos leva de encontro a algo parecido com a frase do maluco beleza: “Eu que não fico no trono de um apartamento esperando a morte do fluxo condicionado chegar” ou então, “faça o que tu queres pois é tudo da lei”. Não tem mais nada disso de ter que fazer isso pra chegar naquilo. Isso aqui deita ao chão, todo tipo de “tem que” ou de “não tem que”, “isso pode”, “isso não pode”, pois tudo isso é visto como condicionamentos sutis, mero cálculo autocentrado... Tentávamos antes, influenciar as pessoas e, agora, queremos influenciar um "Deus de nossa imaginação”... Tudo cálculo infantil.

O: Sim, pois isso chega quando quer e não quando você fica na espera de um milagre previamente imaginado. O looping supremo parece estar aí!

F: Com isso, para mim, chego na percepção de que toda literatura espiritual, é uma ferramenta que utilizamos para tentar fugir desse desconforto, dessa inquietude, dessa agonia, dessa ausência de sentido, dessa ausência de comunhão, desse oco monstruoso. A meu ver, esse é o fato central de tudo.

O: Alguém um dia disse: "O egoísmo destrói e só o amor constrói". Eu digo: "A identificação com o fluxo separa, a observação passiva não reativa integra". Veja, você pode praticar yoga por vários anos, tomar santo daime ou LSD por vinte anos, mas a coisa não fica, e o que fica, é só mais uma forma de dependência, só mais um tipo de ritual ilusório. Do mesmo modo, você pode se sentar numa cadeira e, de forma dramática, contar toda sua vida, contar sobre a superação de algum padrão de comportamento obsessivo compulsivo — pelo menos até aquele instante —, mas, no fundo, trata-se do mesmo tipo de ilusão: a liberdade real não está ali, pois o fluxo condicionante permanece, só trocou de objeto, vestimenta e ritual.  

F: Exato. Se não tiver a observação, esquece, não pegou a “natureza exata”; se não pegar que é fluxo não solicitado do imaginal sensorial condicionado, esquece.

O: Sim, só sai de uma ilusão grosseira e abraça uma ilusão mais refinada.

F: Se não ficar com a angústia, com a agonia, com o oco, com a solidão, seja lá o que estiver produzindo inquietude, esquece.

O: Você só sai de uma ilusão já repelida pela sociedade, para abraçar uma ilusão que ela ainda aceita, e ela só aceita tais ilusões, porque nunca as observou com propriedade.

F: Mesmo com tudo isso, não há nenhum indicativo de que aquilo possa ocorrer, mas existe uma probabilidade grande de que ocorra. Veja que outro dia um dos confrades descreveu um branco em sua mente, onde nele não havia medo, nada, simplesmente se desconectou. O medo só veio quando o imaginal percebeu o branco, projetando toda forma de imaginal, de conceitualização do que poderia ser aquele branco.

O: Só para fecharmos, sem a observação de si mesmo, faça você o que fizer, não é possível a manifestação do estado incondicionado de ser, pois, todo fazer, toda prática sistematizada, em última análise, é uma reação emotiva escapista que sustenta o processo de condicionamento. Mesmo o imaginado estado incondicionado de ser, também faz parte do conteúdo do imaginal, algo que você leu a seu respeito, que escutou alguém falar, ou que guarda na memória, como uma deliciosa experiência fugaz. Qualquer prática, qualquer leitura, sem o estabelecimento da constante observação passiva não reativa, me parece completamente ilusório, destituído de real sentido e significação.

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