O: Bom dia! Outro detalhe
percebido é que além de identificar no ato a entrada das imagens do fluxo, é
identificado também de onde essas imagens foram adquiridas, de quais
experiências, leituras ou instituições. Essa identificação traz de instantâneo,
a certeza de que por meio do conteúdo da memória, que é passado, não pode haver
percepção libertária no presente momento, ou seja, que pela memória, não se dá
o derrame de lucidez. Você percebe também, mesmo enquanto dorme, como que o
imaginal corre solto como sonhos, se mostrando ainda mais desconexo do que
quando em estado de vigília; isso é o que venho chamando de sono lúcido. Essas
percepções quase que simultâneas da manifestação do fluxo, desacreditam de
imediato o conteúdo do mesmo. Isso traz o sentimento que aponta para a
possibilidade de que você mesmo, de fato, pode ser o senhor do seu destino, e
não mais o desconexo conteúdo do fluxo com seus impulsos emotivos reativos com
base no medo. Em outras palavras, tal qualidade de inventário relâmpago, quanto
ao que se passa tanto no interno quanto no externo, vai nos colocando cada vez
mais num contato consciente com tudo que é.
F: Algo semelhante acontece aqui!
O: Isso vai trazendo um viver que
não se importa mais com os erros do passado, muito menos com o que possa
acontecer no futuro, mesmo que esse futuro diga respeito ao dia seguinte,
fazendo com que nossa dedicação fique centrada na qualidade do que vivemos aqui
e agora. Nem mesmo a preocupação com o que ocorrerá na sequência do próprio
dia, em questões de minutos ou horas, toma conta do nosso estado de ser, pois
só o presente momento é visto como morada da realidade. Você vai percebendo também
que, por meio da observação, vamos nos descondicionando da identificação
emotiva reativa com base no medo e que, por meio desse descondicionamento, uma
qualidade de lucidez vai se instalando. Então, naquilo que participamos, uma
nova qualidade de responsabilidade vai ser instalando, uma responsabilidade que
não carrega o velho peso que sentíamos quando nos víamos enredados na mesma. A
própria palavra responsabilidade já não é mais vista com peso ou motivo de
orgulho.
F: Entendo.
O: Um novo senso de participação
e colaboração se instala, quando nos tornamos conscientes da real necessidade
de participação e colaboração. Também fica mais fácil dizer não, quando é
percebido não ser necessárias tais ações de nossa parte. As projeções mentais,
não duram mais que alguns poucos segundos, portanto, não elas não possuem mais
o poder de adulterante enredamento. Isso desmonta a compulsão pelo pensar
compulsivamente.
F: A observação faz o serviço de
ver o que antes não era óbvio, de ver o movimento desconexo, cujo conteúdo é completamente
falso; na maior parte do tempo ele nem ao menos está ligado ao que rola aqui e
agora. Vendo isso, é como que se fosse feito uma rápida eliminação no próprio
conteúdo, algo como que um abandono da televisão mental e, de alguma forma, a atenção é
liberada do fluxo mecânico e não solicitado. Então, o imaginal entra com a
última tentativa de identificação, por meio de um conteúdo mais refinado, que é
colocar a imagem de que um estado incondicionado chegará “no próximo momento,”
ou que “se o fluxo parar o estado incondicionado chegará”. Não entro no mérito
se isso irá acontecer ou não; entro no looping de que o imaginal quer seu
próprio fim, o que me parece ser a sua exaltação suprema... Bummmmmm!!! Então,
o que temos de real, é a percepção de que a observação nos leva a percepção de
todo o conteúdo condicionado, de todo mecanismo da estrutura. Isso é o que ela
faz.
O: Sim, ocorre a percepção do novo
condicionamento de "ter que ter" o fim do fluxo.
F: O que nos cabe mesmo é
observar esse fluxo, sem muito detalhamento ou análise do próprio conteúdo... é
só ver o carnaval passar... a banda. O fluxo passar. A meu ver, esse é o
principal ponto: A percepção total da estrutura condicionada.
O: Se essa percepção ocorre detalhadamente
ou não, penso que isso não importa. Dizer que a observação deve ser detalhada
ou superficial, para mim, seria outra forma sutil de condicionamento.
F: Aquilo que tivemos como
amostra grátis, a meu ver, precisamos mesmo falar daquilo, pois é algo que existe
de fato, algo que sentimos diretamente, que não chegou por causa alguma, por
esforço algum, por nenhum cálculo, por nenhuma prática, algo que não podemos buscar,
mas que existe... Não foi delírio, foi sentido com cada célula do nosso corpo.
O: Penso que falar daquilo que
não foi visto de modo completo, não faz sentido. Falar disso só serve para
acrescentar ainda mais gás para o imaginal de quem lê ou escuta sobre aquilo.
F: Então chegamos na observação
pura, que é a percepção relâmpago do fluxo e seu conteúdo falso, sem que essa
própria observação seja um meio para atingir o estado incondicionado, pois o
mesmo não pode ser alcançado, aparentemente, por nada condicionado. O que temos
em mãos, é a observação do mecanismo da estrutura, como ela funciona, como
ocorre a identificação ilusória, como os impulsos emotivo reativos explodem... Talvez seja esse o tal do autoconhecimento, da meditação, do olhar o movimento do eu,
etc., etc., etc. É bem provável que seja isso a conscientização. Fiquei
pensando nisso ontem, pois é o máximo que dá para fazer. Então, percebo que aqui
entra um outro ponto, o qual percebi quando você falou que ia sair para fazer
uma caminhada... Veja, se algo tiver que rolar, vai rolar, seja lá na caminhada,
ou sentado no sofá da sala. A possibilidade está inclusa em qualquer
circunstância, pois aquilo surge quando quer e onde quer, não existem condições
pré-estabelecidas para o seu surgimento.
O: Sim, todo esse lance da necessidade
de desenvolvimento, de crescimento do espírito, de reparações, rogas e preces,
contorcionismo físicos e nutricionais, tudo isso são conteúdos provenientes de
mentes ainda condicionadas, e que só podem ser aceitos, quando não são devidamente
questionados e observados.
F: O que nos leva de encontro a
algo parecido com a frase do maluco beleza: “Eu que não fico no trono de um
apartamento esperando a morte do fluxo condicionado chegar” ou então, “faça o
que tu queres pois é tudo da lei”. Não tem mais nada disso de ter que fazer
isso pra chegar naquilo. Isso aqui deita ao chão, todo tipo de “tem que” ou de “não
tem que”, “isso pode”, “isso não pode”, pois tudo isso é visto como
condicionamentos sutis, mero cálculo autocentrado... Tentávamos antes,
influenciar as pessoas e, agora, queremos influenciar um "Deus de nossa
imaginação”... Tudo cálculo infantil.
O: Sim, pois isso chega quando
quer e não quando você fica na espera de um milagre previamente imaginado. O
looping supremo parece estar aí!
F: Com isso, para mim, chego na
percepção de que toda literatura espiritual, é uma ferramenta que utilizamos
para tentar fugir desse desconforto, dessa inquietude, dessa agonia, dessa
ausência de sentido, dessa ausência de comunhão, desse oco monstruoso. A meu
ver, esse é o fato central de tudo.
O: Alguém um dia disse: "O
egoísmo destrói e só o amor constrói". Eu digo: "A identificação com
o fluxo separa, a observação passiva não reativa integra". Veja, você pode
praticar yoga por vários anos, tomar santo daime ou LSD por vinte anos, mas a
coisa não fica, e o que fica, é só mais uma forma de dependência, só mais um
tipo de ritual ilusório. Do mesmo modo, você pode se sentar numa cadeira e, de
forma dramática, contar toda sua vida, contar sobre a superação de algum padrão
de comportamento obsessivo compulsivo — pelo menos até aquele instante —, mas,
no fundo, trata-se do mesmo tipo de ilusão: a liberdade real não está ali, pois
o fluxo condicionante permanece, só trocou de objeto, vestimenta e ritual.
F: Exato. Se não tiver a observação,
esquece, não pegou a “natureza exata”; se não pegar que é fluxo não solicitado do
imaginal sensorial condicionado, esquece.
O: Sim, só sai de uma ilusão
grosseira e abraça uma ilusão mais refinada.
F: Se não ficar com a angústia, com
a agonia, com o oco, com a solidão, seja lá o que estiver produzindo
inquietude, esquece.
O: Você só sai de uma ilusão já repelida
pela sociedade, para abraçar uma ilusão que ela ainda aceita, e ela só aceita
tais ilusões, porque nunca as observou com propriedade.
F: Mesmo com tudo isso, não há nenhum
indicativo de que aquilo possa ocorrer, mas existe uma probabilidade grande de que
ocorra. Veja que outro dia um dos confrades descreveu um branco em sua mente,
onde nele não havia medo, nada, simplesmente se desconectou. O medo só veio quando
o imaginal percebeu o branco, projetando toda forma de imaginal, de
conceitualização do que poderia ser aquele branco.
O: Só para fecharmos, sem a
observação de si mesmo, faça você o que fizer, não é possível a manifestação do
estado incondicionado de ser, pois, todo fazer, toda prática sistematizada, em
última análise, é uma reação emotiva escapista que sustenta o processo de
condicionamento. Mesmo o imaginado estado incondicionado de ser, também faz
parte do conteúdo do imaginal, algo que você leu a seu respeito, que escutou
alguém falar, ou que guarda na memória, como uma deliciosa experiência fugaz. Qualquer
prática, qualquer leitura, sem o estabelecimento da constante observação
passiva não reativa, me parece completamente ilusório, destituído de real sentido e significação.
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