24/03/2021

A necessidade de uma explosão de maturidade

 

B: Eu não tenho essa vivência de vocês, no que diz respeito a dissecação da estrutura condicionada. Nesses áudios que mando e nas mensagens que trocamos, pode até ser que você perceba bem a ação dessa estrutura calculista. Eu realmente percebo que muita coisa ainda me passa batido. Estou observando, vendo por mim mesmo o que acontece em meus pensamentos, emoções e sensações, mas tem coisa que falta palavra para descrever ou sei lá, até um déficit de síntese sobre toda essa percepção. Mas lembro de uma conversa nossa, sobre essa inteligência que nos acorda todos os dias, que mantém nossos órgãos nessa harmonia. Essa percepção de não esforço e da vida acontecendo.  Por vezes me confundo se isso vem do cálculo ou se vem daquele inenarrável estado de lucidez e integridade que já experimentei.

O: Desconhecemos as nossas atuais circunstâncias fora dos motivos pelas quais foram criadas, portanto, não sabemos do seu real potencial de ser. Também já sabemos que as mesmas foram geradas pelos condicionamentos, pelo cálculo, pelo medo e pela degeneração de nossos instintos naturais. Com uma mente moldada e adulterada pelo sistema, que em si mesmo é cálculo, não havia, assim como não há, a mínima possibilidade de ações plenamente conscientes, embasadas na integridade da percepção da realidade. Você pode perceber nitidamente, que mesmo tendo obtido um nível maior de percepção, o qual ainda é parcial, fragmentado, ainda estamos sobre os domínios da estrutura que é confusa, insegura e reativa. Nos grupos anônimos há um lema que diz: "Insanidade é fazer as mesmas coisas esperando por resultados diferentes". Não há como, enquanto na estrutura, parcialmente esclarecida, não criar situações que em seu devido tempo, não apresentem novos conflitos, limitações e falsas dependências. Enquanto estamos funcionando dentro da estrutura, a qual é um resultado direto dos herdados e forçosos condicionamentos sociais, não temos como nos livrar de nossos maneirismos, das mais variadas e já percebidas formas de vazia vaidade. Como essa estrutura não tem autonomia psíquica, ela vive preocupada com a aceitação social, em se adequar ao que é tido por politicamente correto e funcional. Nesse tipo de reação comportamental, não temos como saber o que é o real significado das palavras originalidade e liberdade. Não temos como saber o que é a genuína criatividade, pois sempre, por meio do cálculo e da comparação, tendemos a nos ajustar ao que já se encontra estabelecido como padrão de ação, permanecendo como seres de segunda mão.

Parece-me que sem a “recuperação” dessa lucidez que proporciona a autonomia psíquica, a inquietude permanece e, por meio dela, o looping da busca de situações pelas quais tentamos aplacar a inquietude, atividades que de início nos entregamos com euforia mas que, muito rapidamente, acabam se mostrando vazias e destituídas de real sentido. Então, inevitavelmente, caímos no looping de querer saber qual é o real sentido da existência, o que é o viver correto.

As atividades vão se mostrando muito banais, superficiais, moldadas pela compartilhada estrutura. Fica uma necessidade de se descobrir algo que realmente nos toque e, quem sabe, aos demais, uma vez que tudo na vida está em relação. Você percebe que tudo que a mente condicionada lhe sugere, tem como finalidade a retroalimentação da compartilhada estrutura, que já é percebida em seu vazio de sentido. Ao perceber isso, a mente se vê encurralada, sem conhecimento de uma ação pela qual faça sentido se movimentar. Se você decide sair da inquietude por meio de alguma atividade que já foi percebida como sem sentido, então, a mente entra dizendo que, ao fazer aquilo que ela mesma lhe sugeriu, você está "normotizando". O observador parece se ver entre a cruz e a espada.

F: Uma goma.

O: Nisso, a única opção que parece ser viável, é permanecer silenciosamente observando o processo de agonia interna da estrutura, em sua ânsia de sentido, comunhão, integração e liberdade; observando também a oscilação contraditória, bem como a impermanência dos pensamentos, emoções, sensações e sentimentos, oscilação essa que nos deixa esclarecidos quanto a ausência de realidade nos mesmos, bem como a ausência de lucidez. Reagir a essa oscilação só produz mais lenha para a fogueira da oscilação da estrutura condicionada.

F: Só mais emoção.

O: Só cabe mesmo assistir os filminhos, os monólogos da estrutura.

F: Isso é o que dá para fazer: assistir o desmanche, a agonia da estrutura em processo de morte assistida.

O: Nesse assistir a agonia da estrutura em processo de morte, instala-se também um sentimento de tristeza, uma forma de luto, o qual também é observado e sentido sem identificação reativa ou escapista.

C: Exatamente...

O: Você percebe que não faz sentido algum continuar nas circunstâncias presentes, por meio do impulso passado que as estruturaram, portanto, se instala uma necessidade de encontrar uma nova maneira de se relacionar com tudo que é. Mas a estrutura só conhece um modo de funcionar já estruturado e, ao perceber isso, ela tenta entrar com jorros de ansiedade e desespero, o que também é observado de modo passivo e não reativo. Tudo isso, ao ser observado de modo passivo e não reativo, parece-me que vai enfraquecendo cada vez mais o poder de enredamento da estrutura.

F: Fica claro que só uma mudança no modo de ver. Não é algo novo externo que necessitamos; mas de algo que mude o nosso modo de percepcionar tudo. Eu não sinto tanta tristeza aqui como antes, mas sinto uma inquietude descomunal. Há energia, mas acabamos ficando com o que sente, isso que ocorre, sem buscar pelo vício do desabafo.

O: Se você observar bem, verá que já ocorreu uma significativa mutação, ainda que parcial, tanto na nossa capacidade de percepção, como na capacidade de sentir e não fugir do que se sente. Quanto mais você se aprofunda na observação passiva não reativa, mais instantaneamente pega a tentativa de enredamento dos filmes e monólogos da estrutura.

F: Se entrar no filme, já era! Acaba vivendi na abstração, na ficção, na dramaturgia criada pela estrutura.

O: A estrutura se fortalece pela identificação inconsciente com seus enredos não solicitados.

F: Sim. Mas é uma inquietude absurda, que enche o saco. Infelizmente, até aqui, é só isso que há.

O: Por isso que ela se agita cada vez mais, quando percebe que está sendo percebida, que não está conseguindo nem controlar o comportamento, nem uma ideia libertária.

F: Esse é um momento muito louco do processo porque, antes, não havia a observação e a identificado era constante, tudo que surgia nos filmes da mente e das emoções, era visto como algo real.

O: A observação passiva e não reativa está arrancando o poder de controle da estrutura sobre nós.

F: Antes estávamos identificados, colados como sendo esses filmes do imaginal sensorial condicionado. Agora o conteúdo vem, fica um curto espaço de tempo, tipo um comercial, e some por si mesmo.

O: A compartilhada estrutura condicionada fez de nós seres imaturos. Precisamos de algo do tipo, "uma explosão de maturidade".

F: Cai em algo parecido com o que apontava o Segundo Passo das escolas de anônimos, mas nas devidas proporções, é claro.

O: ...“Viemos a acreditar que um poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade”... Mas aqui, esse poder superior nada tem a ver com os preconceitos a respeito de um Deus criado ou aceito em meio de profunda confusão. A sanidade é o estado de lúcida e integrativa autonomia psíquica.

F: Nem me lembrava corretamente da frase. Isso, sem o preconceito de Deus. Percebe-se que agora estamos nisso. Isso está muito óbvio. Caracas! Meu pai!... Até estourou os miolos aqui.

O: Essa admissão veio precedida da admissão de que somos impotentes perante a mecanicidade não solicitada do fluxo do imaginal sensorial condicionado, que pela antiga identificação com tal fluxo, adulteramos a nossa realidade, bem como a realidade de todos que tocamos de modo inconsciente e inconsequente. Há também a percepção de que não há como deixar de adulterar a própria realidade, bem como a de terceiros, se a condicionada estrutura permanecer.

C: A estrutura condicionada é como uma areia movediça: quanto mais você se mexe, mais se identifica e mais nela afunda.

O: Por isso digo que estamos vivendo um processo consciente de "fundo de poço da estrutura"... Estamos como que assistindo e sentindo até onde ela pode chegar com suas projeções e impulsos emotivos reativos escapistas e separatistas. Tudo isso, feito de modo silencioso, passivo e não reativo, visto que foi percebido que a verbalização, o desabafo, é só mais um dos jogos da estrutura, jogo esse que, numa observação mais profunda, só a alimenta.

F: A verbalização movimenta a estrutura; a língua está ligada nela.

O: A estrutura criou o condicionamento de que, pelo desabafo, pela confissão, pela verbalização, a estrutura pode mudar. No entanto, o que se percebe é que ela só faz trocar as vestimentas, os enredos criados pela própria estrutura. Por isso que digo sempre que "bafo de boca não cozinha ovo". Mas é também preciso perceber que ela também criou o condicionamento oposto: o voto de contrição, de silêncio forçoso como forma de vir-a-ser algo diferente do que ela é. Percebe-se os dois lados do condicionamento da mesma estrutura.

C: A estrutura condicionada cria argumentos para se manter.

O: Mas, entre as duas formas de condicionamento, parece-me que o silêncio é menos condicionante, visto que na verbalização, quase sempre ocorre uma forma de doação psicológica de terceiros, a qual, em última análise, é um fator de condicionamento.

F: Aqui é visto o mesmo. Mas o próprio silêncio, se for usado como a verbalização, acaba dando na mesma. A diferença que vejo, é que verbalizar via desabafo, causa uma identificação instantânea; o silêncio também pode criar a mesma identificação.

A necessidade de um poder de percepção superior

O: Sem uma percepção além da estrutura, permanecemos na estrutura e nas circunstâncias por ela estruturada.

F: Está tudo dominado pela estrutura e não tem sequer o que fazer.

O: Não conseguimos ver as circunstâncias de maneira nova, totalmente depurada da afetação adulterante do cálculo autocentrado, livre da dependência criada pelo medo do desamparo, da solidão e do ostracismo.

F: Sim, não vemos; é igual aquelas melecas... Por mais que você estica, a coisa permanece grudada. Pela mente condicionada, não há o que fazer, mesmo que não tenha medo. Nem medo sinto mais, já não sinto mais nada, zero.

O: Não creio que isso seja verdadeiro.

F: Não há a mínima possibilidade de sair disso.

F: Não sinto medo, mesmo que ele venha, com a observação passiva, ele some, passa. O medo já não tem o mesmo poder de antes, já não domina mais. Ele permanece em looping, se apresentando e morrendo com a observação.

O: Mas ele ainda está aí.

F: Agora não, não tem nada aqui, a não ser a sensação de saco cheio.

O: Se está de saco cheio, o que lhe impede de esvaziá-lo?

F: Está bem Out... Beleza que é assim... Aperta botão e pronto! Aqui não é assim não. Sorry! As coisas aqui ficam um tempinho. Borá sorrir na frente das câmeras, que bosta!

O: O que te impede de largar isso, ou de ver suas atuais circunstâncias de maneira nova?

F: Já vejo de outra maneira.

O: Tudo que é produto do cálculo autocentrado, não tem amor e, sem amor, só pode gerar conflito. Enquanto funcionamos no cálculo autocentrado, não há bem-estar, somente ajustamento, forçoso comportamento politicamente correto, o desgastante cumprir de protocolos; permanecemos no looping das circunstâncias sem amor.

F: Já não sou o politicamente correto, mas não tem por onde correr, permanece a velha inquietude. Pode morrer mesmo que acabou; só se ocorrer um “milagre”.

O: Sem uma percepção além da estrutura, permanecemos na estrutura e nas circunstâncias por ela estruturada, se relacionando com elas do mesmo modo estruturado.

F: Exato! Ainda bem que a vida trouxe uns caras como vocês para dar uns toques na coisa.

O: Talvez nem sejam as circunstâncias... Mas a necessidade de descobrir um novo olhar que não seja cálculo, ajustamento ou responsabilidade forçada.

F: Para mim, está mais do que claro que não são as circunstâncias.

O: Enquanto na estrutura, você pode até abandonar suas atuais circunstâncias, mas, inevitavelmente, estruturará circunstâncias igualmente vazias de real comunhão e sentido. Percebo que dentro da estrutura, não tem para onde correr.

F: Trata-se de uma só coisa. O que impressiona é que, mesmo com a observação, ela atraca numa coisa e fica, seja qual for a bola da vez. É sempre a mesma forma de funcionamento, apenas com roupagem distinta.

A: Exatamente,  permanece na obsessão da vez. A inquietude é medo.

O: Falta-nos a integridade da lucidez não emotiva. Carecemos disso.

F: Sei lá! Independente do nome, não tenho.

O: Tudo que fazemos está adulterado pelo cálculo, pela emoção reativa ou pela carga do passado, pela experiência do conhecido.

A: É o medo que nos impede de esvaziarmos o saco. O medo anda de mãos dadas com todas as outras emoções, que foram nomeadas, mas é uma só coisa.

F: Não esvazia porque o esvaziar é também um produto do cálculo autocentrado. Percebe? A estrutura parece não ter fim.

O: Mas estaria a resposta libertária na ação emotiva de esvaziamento do saco? Logo ali, a estrutura começa a estruturar novas circunstâncias que novamente trarão o mesmo conteúdo que cria o sentimento de estar de saco cheio.

F: Estamos mais do que conscientes de que não tem sentido sentir medo, mesmo assim, sentimos. Qual o sentido viver diariamente afetado por loopings de medo? E vivemos! Não há sentido, a estrutura calculista roda por si.

A: Sim, e o cálculo é medo em ação. Não faz sentido nenhum viver seno afetado pelo medo.

O: Nosso saco está cheio é do próprio olhar condicionado da estrutura.

F: Exato! Mesmo a mente vendo isso, ela não esvazia. Ela viu isso, está vendo agora mesmo.

A: O próprio cálculo da mente não é suficiente para esvaziá-la.

O: O que é preciso esvaziar, a meu ver, é o olhar da mente estruturada. Uma mente estruturada no cálculo, nunca saberá o que é comunhão real, nunca estará livre do processo adulterante do cálculo autocentrado. Uma mente sem real comunhão, como pode saber o que é bem-estar? Veja, não temos real comunhão com nada e com ninguém.

A: A estrutura tem que sofrer um impeachment.

O: Isso, algo assim, algo que não seja um produto dos seus cálculos.

F: Boa! Verdade! Isso faz total sentido!

O: Estamos presos num looping de cálculos autocentrados que impedem a real comunhão.

F: Somos insensíveis, pela compreensão conseguimos ver que o outro também tem isso, mas a reação emocional sempre nos joga para o lado do auto-interesse, para o cálculo autocentrado.

A: Tudo o que é causado pela estrutura condicionada é sempre limitado, fragmentado, destituído de real sentido.

O: Enquanto permanecemos nesse looping, não há como saber o que é autonomia psíquica, liberdade, sentido real de viver.

F: A sensibilidade da estrutura é forçada, calculada. Estamos fudidos! Pela estrutura condicionada, não vejo saída. Só não chuto o pau da barraca diante das minhas atuais circunstâncias, porque percebo que isso é só mais um dos impulsos emotivos reativos escapistas e separatistas da própria estrutura; é só mais um looping dela: largar relação, sair do emprego, mudar de cidade ou de país, etc., etc., etc.

A: Não tem ação libertária e integrativa por meio da estrutura.

O: Todos que funcionam dentro da mesma estrutura, alimentam o impulso calculista e separatista... riscou o cálculo autocentrado, ostracismo, cristalização da imagem previamente formada das pessoas e situações.

A: Fato!

F: A estrutura é única! Isso é fato mas, mesmo percebendo isso, ela permanece criando novas formas de looping, criando outra imagem para tentar sair da imagem. É como no filme “A Origem”...  Não tem saída! Já nem sabemos mais o que é sonho, se é dentro do sonho ou de um sonho dentro de outro sonho. Ferrou tudo!

O: A meu ver, sem a ocorrência de uma percepção libertária, integrada, não pontualizada, livre da emoção reativa, não saberemos o que é o viver correto, o que é comunhão, liberdade, felicidade, amor, vocação, ausência do cálculo autocentrado, permanecemos no looping.

F: Pode ser isso. Já nem sei!

O: A expressão "não sei", demonstra a ausência da percepção que integra à realidade.

F: Mas é real. Eu já não sinto o medo como antes, já não estou sendo dominado por ele. Não estou sendo hipócrita.

O: Sinto que precisamos de um contato com algo, em nós, que não faça parte da estrutura calculista.

F: Tem que ocorrer algo além da estrutura limitada que somos, senão, é isso.

O: Veja bem: algo "em nós"... não algo vindo do céu, de outra dimensão ou fora disso que somos. Creio que até aqui, dissecamos muito bem a estrutura e seu funcionamento, ao ponto de percebermos que, por mais esclarecida que seja essa estrutura, ela não tem como, por si mesma, superar sua limitação de percepção da realidade. Em vista disso, é preciso a manifestação de um poder superior de percepção à própria estrutura; algo que surja de alguma dimensão interna não tocada pelo cálculo, pelos preconceitos, pelas manias e tendências, pelas falsas dependências.

A: Isso!

F: Se vier do céu, tudo bem... Não interessa de onde vem. Já tivemos uma breve amostra de que aquele estado integrado de ser, não se limita nem mesmo ao nosso corpo.