25/01/2021

A renúncia como condicionamento supremo

O: Outra coisa que me parece ser interessante observarmos juntos... o condicionamento de ter que praticar alguma espécie de "renúncia"... renunciar a vontade própria e se entregar à vontade do guru, renunciar a vontade própria para poder ganhar "O reino dos Céus", o "Despertar Espiritual", o "Espírito Santo", a "Recuperação", a "Salvação", seja lá o nome que você queira retirar de qualquer cultura. O condicionamento de ter que fazer sacrifícios externos para o alcance de uma imaginada qualidade interna.

F: A ideia da necessidade de renúncia está diretamente relacionada com o que abordamos anteriormente.

O: Veja que essa ideia da necessidade de renúncia de algum fator externo, isso está inserido até nos preceitos tidos por espirituais dos grupos anônimos.

F: Sim descobrir por meio da meditação, qual é a vontade de Deus, e a Ele rogar forças para poder cumprir com essa vontade.

O: A renúncia da vontade pessoal pela prática da vontade do Deus criado pela própria imaginação. Essa renúncia, ao meu ver, ainda é um ranço dos cálculos da mente com base no medo: eu lhe dou isso e você me dá aquilo que eu imagino ser necessário para o meu bem-estar.

F: Renúncia da vontade pessoal é o imaginal aplicando mais um golpe em si mesmo; ele renuncia a si, barganhando que ganhará algo ali na frente.

O: Então, vejo que tem um certo sentido na ideia de renúncia, mas não como esforço para se abster a um padrão de comportamento externo ou circunstância.

F: Eu já não vejo sentido algum nessa ideia de renúncia. Vejo sentido na compreensão do que é, como é.

O: Calma, calma, Vamos devagar aqui. O que vejo sentido na renúncia, diz respeito ao que dissemos agora há pouco, a renúncia de se identificar com o impulso de qualquer busca.

F: Sim, visto que toda busca, no sentido psicológico, só existe no imaginal.

O: A renúncia de alimentar qualquer tipo de expectativa, como dissemos.

F: Para mim, tudo que cai na rede do imaginal não é peixe. Para mim seria isso.

O: A renúncia do esforço pessoal, do cálculo, do uso do próprio imaginal como ferramenta de transcendência do próprio imaginal; a renúncia de se identificar com o conteúdo que o fluxo projeta; a renúncia de alimentar qualquer impulso emotivo reativo escapista.

F: A renúncia de algo que se imagina que possa aliviar toda confusão e inquietude. A renúncia, para mim, também é uma forma de identificação com o conteúdo que parte do fluxo condicionado pelo que se leu, ouviu ou assistiu.

O: A renúncia de fugir da inquietude, do vazio, do oco, da solidão, ou do que quer que esteja brotando do fluxo. Esse me parece ser o real sacrifício, essa me parece ser a renúncia real.

F: Ahaammmmmm... Está aí! Então seria uma estado que me tire de todo sofrimento que é a vida como é.

O: Fora isso, tudo que é tido por renuncio no que diz respeito a psique, vejo como medo, cálculo, fuga... uma fuga mais refinada, que deixa de ser por meio da maconha, da cocaína, do sexo, do flerte, da sedução, do dinheiro, do poder, do prestígio, para ser a fuga divinizada, santificada, sacralizada na vontade do Deus criado pelo confuso e inseguro imaginal. Como você recebe isso?

F: Me parece então que a estrutura, não querendo sentir a inquietude, busca imaginariamente, uma forma de escapar da vida diária!

O: Veja, a própria ideia da necessidade de renúncia, se sustenta numa base dualista, que também tem base na sua interpretação conceitual de bem-mal, defeito-virtude, doença-saúde, disfuncional-funcional.

F: Quer então ganhar algo extra, de se tornar algo especial? Renúncio isso, desde que eu tenha um estado alterado de consciência! Pegou a sutileza? É sempre o mesmo truque, mesmo mudando as imagens do baralho.

O: Tentamos o estado alterado da consciência, por meio das drogas licitas e ilícitas, por meio de bebidas enteógenas, e agora, tentamos pela droga de uma imaginada barganha celeste.

F: Exatamente. Ou mesmo pelo intelecto, tipo, obter um conhecimento específico, o qual melhore da dor inquietante do dia dia, no caso do assunto de agora.

O: Sim, mas a questão da aquisição de conhecimento, esse me parece ser ainda algo muito primário. Veja, parece-me que o mais forte e último dos condicionamentos, é a barganha do sacrifício sagrado.

F: Sim, com a expectativa de se tornar uma pessoa santa, boa, moral ou melhor... O conhecimento de uma nova crença, religião ou filosofia, não é mágica ou mística, que possa levá-lo à paz e felicidade eternas, não se trata de felicidade e tal, ou tipo uma liberdade de emoções e sentimentos de intenso sofrimento.

O: Veja, esse condicionamento do sacrifício, da renúncia, permeia o imaginal coletivo por séculos e séculos; ele está nos contos, nos filmes, nas novelas, nos cultos, nos jogos, no centro de quase todos, senão todos, sistemas de crença organizada.

F: Estamos detonando tudo por meio disso... A renúncia do eu, do ego, do mim, da pessoa... Mas o que não é percebido pela maioria, é que a renúncia para se livrar dele, ainda é ele criando o looping da renúncia.

O: Mas mesmo o eu, o ego, o mim, a pessoa, e a ação para a renúncia dos mesmos, parte da estrutura.

F: Exato! A renúncia para a solução dos problemas de relacionamento do eu. Percebe também aí a barganha, a continuidade do cálculo autocentrado?

O: A renúncia de si mesmo, sem dúvida, me parece mais um cálculo, mais uma barganha.

F: Sim. Renuncio o que penso para poder parar os pensamentos, mudar os pensamentos, me livrar dos pensamentos... Percebe?

O: É o Doutor Estranho barganhando em looping com Dormammu.

F: Sim! (Risos)

F: Autoaperfeiçoamento... Nossa mãe! Não se trata nada disso!

O: Acho que aqui, tocamos num dos condicionamentos dos mais difíceis de ser aceito pela mente coletiva.

F: Para mim, tudo isso ainda entra no looping das expectativas. Faz todo sentido. Um pacote de expectativas, no caminho da dita iluminação! (Risos)... Não tem jeito: a observação passiva e não reativa, quebra tudo, deita tudo ao chão...

O: Sem dúvida alguma!

F: Vamos colocar assim uma espessa camada de expectativas e narrativas, sobre a jornada imaginaria rumo à iluminação, adquirida de séculos, e estruturada por anos e anos de busca. Destruiu... Durma com isso, quem conseguir dormir... A observação arranca todo tipo de cenoura espiritual, arranca toda flauta mágica. Mano dos céus! Violência total! Verdadeiro mentecídio!

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