25/01/2021

Observando a expectativa de um derrame de lucidez

O: Onde paramos?... No xeque-mate do processo de descondicionamento.

F: Sim, impossível de ver isso logo no início do processo.

O: Pois bem! Olhamos para tudo isso, e chegamos no ponto do xeque-mate do processo de descondicionamento.

F: Essa percepção é um novo choque. Perceber de cara que você está entrando em um barco que vai lhe deixar realmente impotente. Digo de fato, pois, inevitavelmente, sentirá isso.

O: Vimos que, talvez, o que é comumente chamado de "espera de um milagre" ou de "vinda do espírito santo", pode ser mais um dos loopings da estrutura, outro impulso emotivo reativo escapista.

F: Que nem você nem os outros sentem de fato. A espera é mais um looping, muda apenas a palavra seguinte. Isso tira grande energia que estava indo para estrutura.

O: Mas vemos também a necessidade da ocorrência de algo que nos habilite um feliz estado de perceber e sentir, algo que nos arrebate em novas e incalculadas possibilidades de ação, relação e conexão.

F: Se chegamos no ponto que sentimos a impotência real, então, a única coisa que resta, pelo menos é o que percebo até aqui, é algo além disso.

O: Algo que apresente ao atual cansaço de nossa vida, um encanto que não é racional nem logicamente deduzível de nenhuma outra coisa.

F: Penso que sim. Só que sentir a necessidade de algo não é esperar algo.

O: Penso que esse encantamento, nada tem a ver com o que os teólogos chamam de "um dom da graça de Deus", mas algo ainda não potencializado em nosso próprio organismo.

F: Chegamos num ponto de não saber o que é esse algo, só sabemos que nada tem a ver com o Deus da imaginação; algo novo, desconhecido, que não é produto dos delírios do imaginal condicionado.

O: Percebemos a vida através dos sentidos do organismo, certo? Nada além disso, não é mesmo?

F: Sim. O imaginal não pode entrar nisso. Percebemos pelos sentidos, interpretados após, de modo fragmentado, pelo imaginal ou no ato.

O: Percebemos que nossa capacidade de sentir está adulterada, e sentimos pelos sentidos. Então, a mutação precisa ser de ordem dos sentidos.

F: Não são apenas o que são como são.

O: Isso nada tem a ver com coisas do tipo: "intervenção" de um Deus projetado por nosso medo e confusão.

F: Nada daquele condicionamento de “Deus da maneira como concebemos”. Nada disso!

O: De nenhuma maneira.

F: Nada que venha do confuso imaginal coletivo ou pessoal.

O: Sim, pela observação, matamos o Deus de nossa confusa imaginação.

F: Jogamos isso fora, para nós, não mais existe tal entidade.

O: Vimos Deus como a mais elevada forma de condicionamento, o qual produz a mais ilusória das dependências. Já tentamos isso por décadas, sem alcançar qualquer resultado real.

F: Dependência do looping Deus.

O: Aliás, nunca sentimos nem o próprio Deus imaginado.

F: Nunca!

O: Nunca sentimos real e duradoura conexão com ele.

F: Sim, veja o absurdo: “Eu sinto Deus”... Que sentimento é esse senão o próprio imaginal? Nem tal sentimento existe.

O: O imaginal é capaz de gerar até uma gravidez psicológica, com alterações no próprio corpo. Nossa confusão não nos deixa ver a força de nossa insanidade: não conseguimos conexão com um ser humano, nem mesmo com a natureza, e queremos conexão com um Deus produzido por nossa imaginação, coisa que condicionamos como a busca de um “contato consciente com Deus”.

F: O que se vivencia, é uma neurótica e passante euforia rotulada de Deus. Isso é o que sempre ocorreu aqui. Passada a euforia, o medo, a inquietude e a confusão sempre estavam a minha espera.

O: Fato.

F: Visto isso, o xeque-mate é claro.

O: O fato é o xeque-mate, a impotência, a plena consciência da ausência de uma libertária lucidez.

F: Qualquer história trazida pelo imaginal, só tem o poder de gerar mais coisas imaginárias, e mais sentimentos ditos “desagradáveis”... Esse me parece ser o miolo do looping...

O: O que se apesenta como fato, é a total ausência de poder para transcender a condicionada estrutura com base no medo e no separatista cálculo autocentrado.

F: Isso é o fato. Não tem aquele que mude o que é visto, porque, ele mesmo, é parte da estrutura, uma invenção. Quando você vê isso com clareza, é game over! Barco virou com todos dentro... Igual o Titanic. Isso me remete àquela frase do Cristo na cruz... “Hoje mesmo vocês dois estarão lá comigo”... o imaginal e o sensorial condicionado em processo de morte, tudo indo pro saco.

O: O que há é a percepção de que, por melhor que seja o nível de nossa lógica e razão, carecemos de algo que nos proporcione uma dimensão acrescida de significativa emoção.

F: Isso que percebo aqui. O trem da lógica e da razão, como ferramenta para tentar compreender a estrutura, ainda está rodando... Mas a pergunta me parece ser: compensa investir nisso novamente? De novo? De novo? Não foi vista a falência desse trem?

O: Percebemos que tanto a lógica como a razão, se apresentam a si mesmas, com o passar dos dias, como ilógicas e irracionais. Percebemos que, no que diz respeito a transcendência plena dessa mente com base no medo, dessa limitada e traumática estrutura psíquica pela qual funcionamos, a lógica e a razão são como um frágil barco vazio, dotado de um enorme furo em seu “calado”.

F: Isso não se mostra lógico, muito menos óbvio para quem não viu o imaginal como fluxo não solicitado, e que não existe tal coisa como “pensador compulsivo”. Para mim, isso ficou direto e claro. Então, a estrutura se vendo condicionada, tanto no sentir quanto no pensar, por mais lógica e racional que ela seja, atinge seu ápice do processo de descondicionamento, percebendo que ela mesma é limitada, confusa, condicionada e nada pode fazer para sair disso.

O: Quando você chega aqui, resta ou não resta algum tipo de esperança?

F: Mesmo que haja, ela é vista como algo em vão, e acaba caindo por terra no ato em que é percebida.

O: Então o que fica? Conformismo estagnante? Morre o sentido daquela frase usada pelos cristãos: "Enquanto vivendo na esperança, aguardamos a vinda do Cristo Salvador"? (Seja lá o que você entenda por Cristo). Eu percebo aqui, a necessidade de um incausado derrame de amorosa, integrativa e criativa lucidez... uma capacidade desconhecida de sentir de percepcionar a realidade.

F: Não vejo conformismo... Veja: capacidade de ver o que é.

Outsider: A necessidade de um derrame de tal qualidade, me parece algo muito lógico e racional, visto que consideramos a impotência da limitada estrutura pela qual funcionamos, transcender a si mesma, por meio de seus confusos e militados esforços. O que me diz? Vimos até aqui, que o que convencionávamos por felicidade e amor, nada mais era, do que corriqueiras euforias sensoriais, com os quais conseguíamos algum alívio muito rápido, uma fuga momentânea da inquietude original que sempre fez a base do nosso estado de ser. Desconhecemos um estado de felicidade que não seja simples sensação de fuga da realidade. Tentamos essa felicidade por vários tipos de comportamento, por meio do sucesso, poder e prestígio, por meio do sexo e de relacionamento, meio do jejum, da busca de um modo de vida na simplicidade voluntária, por meio da abstinência de determinados padrões de comportamento obsessivo compulsivo, pelo uso do outro que, ilusoriamente, chamamos de “doação de nós mesmos”, pela prática do silêncio ou da observação do agora, e por tantas coisas mais, mas não conseguimos, de fato, isso que a palavra felicidade tenta apontar. Tanto pelo que vivi, quanto pelo que li de incontáveis relatos de homens e mulheres, sem um incausado e inesperado derrame de lucidez, nunca saberemos o que é o fim da confusão, da inquietude, do vazio, da solidão, da ausência de real conexão, das ilusórias e limitantes dependências e de outras sensações torturantes. Penso que sem o despertar de um estado de ser psicologicamente autossuficiente, nos é impossível o conhecimento do que é liberdade, felicidade e a comunhão de uma vida impessoal. Aqui ocorre a certeza, de que nada que venha do imaginal condicionado, tem o poder de nos levar a esse estado peculiar.

F: Esse é o ponto chave: o imaginal ainda imagina o que deve ocorrer para que algo mude tudo, mas ainda é ele. A percepção disso nos joga no que temos de fato, no que é real agora... digo, a observação passiva e não reativa, diante do que sentimos... Seria conformismo se nem aqui tivéssemos entrado... se estivéssemos seguindo o mesmo trilho dos que nos cercam...

O: Nossa cultura, ao longo de seus séculos, sempre enfatizou a necessidade de autonomia material e financeira, como o fator primordial de toda busca. Para mim, percebo que isso é um fator secundário a ser perseguido, pois temos visto homens e mulheres que, mesmo vivendo em situações abastadas, acabaram por colocar fim a própria vida, por causa da ausência de autonomia psíquica. Para mim, o despertar ou a recuperação de tal estado de autonomia psíquica, é a mais importante de todas as capacidades humanas.

F: Tanto faz o indivíduo ter esse tipo de sucesso ou não. Vamos dizer que conhecemos o que temos, ok? Digo que precisamos do financeiro para manter o básico, mas jogar isso como meta, é o mesmo que correr atrás de algo ilusório, pois vamos dizer assim e duramente, “o fim” nos aguarda, com ou sem sucesso financeiro. Para mim, a busca do sucesso material e financeiro, a importância da construção de uma sólida carreira com vista numa aposentadoria privilegiada, esse é o principal fato a ser negado do conteúdo do imaginal condicionado. Reconhecer esse fato, é algo muito doido para a estrutura pela qual funcionamos. Por isso que eu lhe questionei logo cedo: Será mesmo que existe algo tido como permanente, até mesmo no modo de sentir? Pois, para mim, toda questão me parece que joga nessa pergunta, caso contrário, me parece que estamos numa utopia. Isso tendo em vista que já sentimos algo distinto da realidade de tudo agora percebida,  mas que, igualmente, não permaneceu.

O: Já vimos que foi por ação do medo, que saímos daquele inenarrável estado de bem-aventurança. A queda por ação do medo, também foi confirmada na experiência relatada de muitos homens e mulheres, o medo como fator de queda de tal estado.

F: Vimos também que aquilo entrou sem nada, sem nenhum cálculo ou esforço de nossa parte... o medo, que é a própria estrutura, adulterou a continuidade da experiência. Foi o medo que nos trouxe de volta ao estado em que estamos agora, o qual tem em sua base, o próprio medo. Isso é o que me parece. Mas nada podemos fazer para atingir aquilo, a não ser que possamos fazer algo?

O: Já vimos que o Incondicionado, não pode ser condicionado por nada, pois, se assim, fosse, não poderia receber a qualidade de Incondicionado... Mais uma partida do imaginal e mais um Looping no xeque-mate.

F: Isso. Podemos então, chegar aqui e ficar com a observação de toda expectativa, até mesmo do que chamamos de um “derrame de lucidez”? Vimos que qualquer tipo de expectativa, retroalimenta a estrutura, é um gás para sua energia. Ficar com a observação dessa expectativa, somente por esse fato, nada mórbido ou depressivo nisso... Apenas realmente deixar a estrutura  sem nada... Sem onde ter como apoiar sua cabeça... Isso faz sentido?

O: Sim, totalmente... O que temos agora, neste momento do processo, é a observação passiva e não reativa da expectativa de uma experiência que produza um fechamento no fluxo do imaginal sensorial condicionado.

F: Exatamente! Veja, esse ponto é fundamental... Me parece que esse tipo de expectativa, se mostra como fonte de aquisição de alta energia para a continuidade da estrutura, uma vez que ela aumenta o que chamamos de inquietude original.

O: Faz sentido. Se não aumenta a inquietude, no mínimo, a mantém.

F: Então, podemos compreender essa expectativa, digo ver como isso é, e ir se conscientizando desse truque da estrutura, ou então, voltar a velha busca, a montar no trem da busca sem fim... Deixamos de correr para dinheiro, poder, prestígio, sexo e relacionamento não dependente, mas passamos a correr para um algo que imaginamos que vá nos brindar com liberdade, felicidade, real conexão e amor impessoal, visto que ainda estamos sentindo a mesma inquietude, da mesma maneira. Então, ficamos com esse inquieto sentir, dessa maneira e ponto final. Vimos, então, toda limitação.

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