29/12/2021

Quem aguenta a própria inquietude?

F: Bom dia, Out! Minha mãe falou que devo voltar para os anônimos, porque minha cabeça não está boa... Sei, a minha …. Foda, véio! Muito bizarro! Basta você dar alguma opinião, a coisa se aproxima, a estrutura Familiar, que é o berço da coisa; eles querem normatizar a forma de raciocínio... Tem que ser bonzinho, educado, frequentar a igreja, etc., etc., etc. O lance é insano demais. É como diz o filme “Don’t look to up”. Até o título do filme foi uma sacada. Acredito que você já ouviu o mesmo da sua família.

O: Aqui, eu e Deca vamos revezando na inquietude.

F: A percepção do falso gera agonia mesmo; eu estou assim, irritadiço; resultado da overdose de família.

O: Pior que não dá para entender esse momento do processo de descondicionamento, esse limbo em que nos encontramos.

F: Não saímos disso, pode crer; estou na mesma.

O: Você olha e olha e só percebe mais do falso, mais da insanidade.

F: O texto da última conversa jogou todo mundo na lama.

O: Para quem despertou para a percepção do falso e para o abismo que existe no que se pensa ser relação, o pensamento judia, e nos joga num momento delicado.

F: Quem desperta para essa percepção, não tem como não ser roído pela inquietude.

O: Só não rói se fazer como muitos aí, que fogem do paradigma para se narcotizar com algum conjunto de ideias que, em última análise, se mostram igualmente ilusórias. E hoje, com o advento da internet, proliferação de ideia falsa com arranjo cênico é o que não falta.

F: Para mim não dá. Quem foi sério com o paradigma, não tem como perder tempo com nada disso. O lance é que ninguém quer ficar com o que é: com essa estrutura irritadiça, implicante, cansada de si mesma, que não consegue manter relação real, que vive excessivamente preocupada com a própria imagem. Pode ver aí, sentou para uma conversa, não sai nada que se aproveita. Fica tudo no âmbito dos condicionados desejos umbigóides... comprar isso, fazer aquilo, correr atrás das próprias projeções alugadas. No que diz respeito ao nível de sentimentos significativos, tudo se mostra vazio; no máximo uma mão no ombro e um breve abraço. Todos com olhar distante, perdidos em seus pensamentos e sentimentos. A maioria acorda a mi, por hora, todos os dias, derrubando ou arrastando coisas... As pessoas nem se sentam mais para conversar...

O: A inquietude, acrescida da tela do celular, não deixa que isso ocorra.

F: Todo ano a mesma coisa, as mesmas preocupações que não servem para nada. E se você fizer o menor comentário que seja, é porrada! Difícil de conseguir o mais simples dos papos, pois tudo cai nas preocupações, no dinheiro, nos exames médicos, fica só nisso, não tem relação real. Tudo é muito patético.

O: Não é diferente por aí; isso rola em todo canto, só que são raros os que percebem esse mecanismo patético. Quem mandou despertar o olho que vê? Pior é ver que você mesmo não tem nada de significativo para compartilhar, o máximo que consegue, é falar algo que jogue o cara na mesma situação inquieta em que você se encontra agora mesmo. Já falei: não tem jeito, só milagre!

F: Não tem uma conversa um pouquinho mais profunda.

O: E se tivesse? O que pensa que mudaria?

F: E se tivéssemos? Como isso afetaria aos demais?

O: De nada servem as conjecturas, os “e se”! O fato é que não temos! Estamos que nem eles, a diferença, é que tomamos consciência disso. Só isso!

F: Exato. Há um distanciamento, uma cegueira... Nossa mente, nosso coração, não alcança a relação, por mais que queira. A estrutura criou uma bolha, nos separou.

O: Sim, fica sempre um hiato.

F: Um buraco, um canal, zero... Para eu me comunicar com os familiares, só se eu alimentar as preocupações deles, ou então começar a falar de grana ou outras merdas. Não há reação química alguma.

O: Tedius pronobis.

F: Só se eu encher a cara como eles... E o cara que tenta sair disso tudo, é que é tido por louco. E se nos derem três minutos para falarmos o que vemos no momento, ou todo mundo surta ou, acabamos apanhando. O mais provável é que apanhemos.

O: Se falar a real, somos expulsos da família... Tiram o nome do testamento. Um minuto da nossa fala, deitamos ao chão o castelinho de cartas marcadas que eles cuidam com tanto zelo.

F: Nem me fale! Ali, tudo impermanente, tudo é perecível e, a longo prazo, se mostra insatisfatório; tudo passante, batido, vaidade. Parece que há um instinto de ignorância, um desejo de não saber, um véu de Isis. E nós? Como ficamos diante disso tudo? Com a enorme inquietação interior, uma vez que tudo que é percebido, se mostra como passante. A mente busca incansavelmente algo que dure, um prazer que dure, algo para fazer que dure, algo para resolver, para se distrair. Estou apenas relatando fatos, não estou reagindo a eles, apenas observando… Bizarro ver isso. Não encontramos nada, então, a mente quer aquele estado maravilhoso, aquela experiência singular, e quer que aquilo dure para sempre; ela alimenta o desejo de perceber algo com real beleza.

O: Abriu os olhos para isso, a coisa fica difícil mesmo; a quem mais é dado, mais é cobrado. E o pensamento tem uma forte tendência a deixar tudo isso de lado e correr para alguma forma de ignorância, mesmo que ela venha mascarada de conteúdos de autoconhecimento. A maioria acaba na síndrome de Cypher, preferindo idolatrar a ignorância. Mas, se o indivíduo viu mesmo, com toda propriedade, não tem mais volta. A própria observação acaba mostrando que esse impulso de chutar o pau da barraca, de abandonar tudo, é só mais uma da estrutura insana.

F: Tudo é apenas mais um pensamento passando... Se agarrar ou abandonar é tudo do mesmo pensamento. Se você agarra, se se identifica com ele, segura e ele fica ali. Mas, se solta, some, vai embora, morre. Só fica morrendo de momento em momento, por isso que é foda... Você vai morrendo para tudo, e não tem um gato para você pegar pelo rabo; nunca é estático, tudo está sempre variando, mas a estrutura quer se agarrar, quer ser imortal, quer se segurar.

O: Você vai parando de se apegar em qualquer coisa, não se apega nem mesmo na necessidade de encontrar uma resposta para tudo isso.

F: Exato!

O: Porque já sabe que não depende mais de você, de que não adianta esforço, não adianta parar para ficar esperando por algo milagroso, não adianta nada! Você realmente só fica percebendo o falso, percebendo os condicionamentos, os loopings insanos que ocorrem tanto na mente como nas sensações (não só em você, mas no ambiente que o cerca).

F: Não adianta nada, pois, tudo o que fizer, parte do cálculo autocentrado. O qual alimenta a estrutura.

O: E tudo se mostra muito patético, imaturo tudo e sem real sentido de ação. Então, você fica só observando o dia passar, enquanto arruma algo para fazer, para ver se amenizar um pouco tédio. E mesmo isso que você arruma para tentar matar o tédio, também é percebido como sem sentido, algo que você faz apenas para não ficar parado no sofá ou para não voltar para a cama.

F: Tudo se mostra babaca demais!

O: Vai sumindo a antiga briga com a inquietude, você não briga com mais nada, seja interno ou externo; você só fica aí com o que se apresenta, porque já sabe que se não ocorrer algo além do cálculo, é só postergar a inquietude para outra situação. Permanece aquela inquietude sentida e observada de modo muito silencioso, ninguém mais precisa saber do que se passa com você. E como aprendemos a observar a inquietude em nós, fica clara a percepção da inquietude do outro, assim como a maneira como ele tenta fugir dessa inquietude, sem a mínima percepção da própria inquietude.

F: A inquietude faz busca por algo, no entanto, não permanece nada daquilo que ela busca e o resultado, só mais da mesma inquietude.

O: E tudo do que se apresenta aí na sociedade — porque o que está aí na sociedade está para o nível das mentes condicionadas que não percebem os seus condicionamentos muito menos as forças de condicionamentos que partem do parental e do social — se mostra muito superficial. Então, o que sobra é esse sentimento da inquietude e da solidão psicológica, porque hoje não há mais solidão física, porque temos condições de estar na vida de relação, aí do jeito que se apresenta; não estamos mais isolados, não estamos mais criando problemas com as pessoas, elas não estão mais se afastando de nós, só que não há a mínima possibilidade de conversar algo sobre o que percebemos sobre o viver, porque se você falar algo do que você percebe, prontamente você é taxado de doente, de problemático, de neurótico, de alguém que está precisando de algum tipo de tratamento mental ou espiritual.

F: Exato! Não tem nada externo, a coisa não é externa. A observação pegou o jogo, pegou a inquietude e seu looping de busca que não aquieta. Todo looping é assistido, sem desespero, você só vê que é assim.

O: E é interessante perceber como que vai cambiando essa inquietude... em geral, ela começa com o sentimento de vazio e de falta de sentido, e quando esse vazio e essa falta de sentido são percebidos, entra uma ansiedade para encontrar algo que faça sentido e que elimine o vazio; como a mente não consegue encontrar isso, instala o sentimento final de angústia ou de tristeza por não conseguir encontrar isso, mas a mente não se conforma e entra no looping novamente... Ela fala que não pode ser só isso e novamente constata o vazio das coisas que se apresentam na sociedade, e surge nova angústia... Ficamos só assistindo isso.

F: Busca incessante que ocorre por si; a mente busca, olha, passa, volta...

O: Mas você pode ver que a maioria dos confrades não aguenta isso; a maioria sai correndo atrás de novos sistemas, novas crenças, novas práticas, novos cursos... A maioria não consegue alcançar essa autonomia psíquica que nos deu a condição de observar a futilidade da busca. Essa inquietude não os deixa perceberem que a verdade é uma terra sem caminho, sem crença, sem sistema, sem cursinhos...

F: Porque é muito foda ficar com esse vazio, perceber que não tem nada que elimine de fato a inquietude inata. Mas, para quem chegou nisto, tudo se mostra vazio, tudo palavras vazias; a mente não tem condições de tocar aquilo. 

26/12/2021

A observação e a experiência do isolamento natalino

 

O: As ocorrências aqui no ambiente familiar natalino, deixou bem claro que todos são tão doentes como nós; todos funcionam com base na mesma estrutura isolada; ninguém ama, há uma preocupação enorme com a proteção da própria imagem, e isso impede a manifestação de uma comunicação real, impede a conexão, força um estado de politicamente correto, uma fala e uma interação protocolar.

F: Ninguém se relaciona de fato.

O: Observação escancarou o falso, o script, os discursos cristalizados, o jogo de manutenção de imagens.

F: Forte isso.

O: Não há como ter conexão real, só simulação de conexão. Estamos todos fechados, lacrados, isolados, fugindo do ambiente de algum modo, seja pela comida, pela, pela bebida, pelo cigarro, pela tela do celular ou por assuntos que não dizem nada. Ver isso gera um certo desespero.

F: Chegou perto, a estrutura já desconfia. Vivemos numa mentiropatia coletiva.

O: Não estamos bem em lugar nenhum; é perceptível a movimentação calculada, a ausência de naturalidade.

F: A questão toda é essa: há um movimento de interioridade, de isolamento. A coisa vem no peito, e você só sente.

O: Terrível.

F: A coisa cria uma inquietude que nos mantém emocionalmente isolados... um fluxo tremendo de pensamentos. Esse isolamento parece ser o núcleo de todo mecanismo. Para quem está ligeiro nas relações, perceberá isso, assim como que não há ação de nossa parte que modifique isso, que acabe com esse isolamento crônico. Para não nos sentirmos ainda mais isolados, os pensamentos entram, numa tentativa de alcançar uma segurança distorcida.

O: O estrago do lar neuro-compulsivo é terrível. Forma uma estrutura mental e emocional com base no medo e no cálculo autocentrado. Esse cálculo só cria apegos, dependências, impede a conexão real.

F: O buraco parece ser até mais embaixo.

O: Se o cálculo não é atendido, começa um looping de novos cálculos autocentrados para o alcance de outro ponto de apego. Enquanto a estrutura permanece, sem chance de conexão real, só simulação. O uso do químico, a raiva ou a depressão quebram a simulação e a realidade da estrutura adulterada se apresenta. Parece que só milagre mesmo.

F: Essa coisa nos encolhe; há um circuito próprio, um isolamento natural, inato, uma postura de autodefesa. Coisa estranha demais. Não se trata de algo pensado, mas sim, visceralmente sentido. Isso nos mantém interiorizados, isolados; cria perspectiva própria que nos arranca da experiência mais simples que rola no momento; não há o que fazer, a não ser observar, sentir a estrutura em seu isolamento, criando perspectivas, só assistir o delírio ocorrendo em forma de uma avalanche de pensamentos, tentando manter como certo o que não está certo…

O: O "e se" parece ser o núcleo da estrutura calculista autocentrada.

F: Não consegui refletir nisso, estou olhando aqui. Como não há nada, ela vem com “e se”... Pode ser!

O: “E se” não tiver milagre que nos tire disso? “E se” vier e não ficar?

F: “E se” ficar?

O: O “e se” é a essência do tempo psicológico que nos impede de viver o instante em sua integralidade; ele é o combustível do mecanismo da estrutura imaginal. O “e se” tem por base o medo e o medo, é a estrutura e si. Onde está o "e se", não há nada de amor

F: Sim. Estou vendo como pode ser o núcleo. Essa coisa isola sem que haja um medo real; trata-se de uma inata postura de proteção.

O: Você percebe, sente o isolamento, quer sair dele, mas não sustenta esse querer. Você percebe a ausência de conexão, quer se conectar, mas não consegue de modo algum.

F: Sim, estou vendo isso ocorrendo em mim aqui e a gora.

O: Também estou vendo aqui, não só em mim, mas em quase todos que estão aqui “comemorando”.

F: Chegamos num ambiente, ou alguém chega, e de imediato surge um sentido de interiorização, de encolhimento.

O: Para quem tem olhos de ver, fácil de perceber cada um em seu encolhimento.

F: Para sustentar tal encolhimento, um carrossel de pensamentos vem auxiliar, pensamentos automáticos, centrados, com teorias, achismos, fundamentalismos, etc., etc., etc. Tudo isso sustenta o isolamento, a insanidade que é sentida.

O: Isso torna impossível a conexão. Vejo aqui que sempre foi esse o mecanismo.

F: A meu ver, esse encolhimento é o centro.

O: Quando a inquietude causada por esse encolhimento se torna quase que insuportável, ela gera o impulso emotivo reativo de sair destas pseudo-relações e achar liga em outras: outro relacionamento, outro emprego, outras amizades, outro país... Esse me parece ser o looping eterno de uma mente que não consegue conexão real.

F: Essa coisa sentida na garganta e no peito é o núcleo... Mas olha o isolamento sentido. Perspectiva que se cria para manter esse sentido de interioridade, de isolamento, de separação, para mim, o núcleo é esse. Não se trata de algo pensado, isso está ocorrendo, está sendo sentido, de modo muito profundo. Um sabor que sentimos desde criança, um cheiro, algo familiar. Você tem aí, assim como eu tenho aqui.

O: Isolamento crônico desde a mais tenra idade. É possível perceber isso em algumas crianças.

F: Sim.

O: É uma coisa no peito que nos mantém isolados, trancados em nós mesmos, coisa essa que desce para o peito, depois para a barriga, disparando o mecanismo do imaginal sensorial condicionado.

F: Exato. É bem isso!

O: Mas algo mudou com a observação... Se instalou uma espécie de “foda-se”. Tudo isso é percebido aqui, e no mesmo instante em que é percebido, rola também esse “foda-se”, esse dar de ombros. Tudo que é percebido vindo da estrutura, é recebido com a mesma qualidade de “foda-se”, é só mais uma dela. A coisa pede para sair correndo, mesmo sem saber para onde, tal impulso é percebido e recebido com o “foda-se”. E assim vamos indo, para ver até onde isso chega. Apesar do desconforto, sinto que precisamos chegar numa espécie de consciente colapso assistido.

F: Sim, aqui também está ocorrendo esse “foda-se”. Não há como manter nada mais no imaginal e no sensorial.

O: Isso. Mas fica lupando: Garganta, peito, barriga, imaginal... Tudo parte da percepção do isolamento e da total impossibilidade de conexão real.

F: Até mais que percepção, pois isso é sentido aqui. O bagulho está aí desde criança.

O: Sim, sempre fomos isso; trata-se de algo crônico. Você pode ver as crianças se escondendo quando chegam os adultos...

F: Sim, esse impulso ao isolamento parece ser algo inato.

O: Já tentamos de tudo para quebrar esse isolamento, mas nada resultou de fato. Parece que só por meio de um milagre. A própria observação não nos liberta dele, apenas nos dá condições de observá-lo e sentí-lo, sem que ocorra a velha reação neurótica, seja no sentido de alimentá-lo, ou de tentar fugir dele de algum modo.

F: Concordo! A observação acabou se tornando outro condicionamento. Você fica preso nela vendo o looping. Loucura, cara!

O: Insano.

F: Adquirir uma ferramenta, a qual, após certo tempo, vira a própria condição limitante. Mas veja, ela vê, sem ela, não havia possibilidade de ver isso. Ela nos mantém vendo a tela do imaginal o tempo todo.

O: Não vejo isso. Vejo que a observação não nos limita em nada... Ela só vê a própria limitação ocorrendo, ela vê o que de fato nos limita, que é o que tem pra ver: só a estrutura limitada e limitante. Isso tem que colapsar.

F: Só por meio de um milagre. Só se ocorrer um olhar que não seja adulterado por isso.

O: Mesmo a observação do que é sentido, não liberta da enorme letargia gerada pelo fluxo constante.

F: Mas veja, o mais loko disso, é que tudo é subjetivo... O que rola ao redor, o que ouve, o que tem no ambiente, assim como os demais sentidos... Não conseguimos sequer ver a nós mesmos, vemos apenas a subjetividade. Essa é imaginaria; é essa porra que fica nos chamando a atenção, esse mundo virtual, subjetivo. E todos estão nisso, cada um com sua subjetividade, ninguém na ocorrência factual. Veja como é fácil perceber que ninguém ouve o que é dito, ouve apenas o subjetivo.

O: Sim, as pessoas não escutam o que é dito, mas sim, os próprios condicionamentos sobre o que foi dito. O mecanismo de proteção, de isolamento, impede que a escuta seja objetiva, acaba sempre jogando no subjetivo.

F: Isso é muito bizarro: ninguém vê o que é visto, não consegue ficar ali, vê apenas o subjetivo. De imediato, pula para a subjetividade, pula para isso, por não ser capaz de observar de modo passivo e não reativo. Só que parece que não fomos educados a ficar no que é visto, no que é ouvido; fomos educados a pular para o subjetivo.

O: Sim, por meio da nomeação ou categorização.

F: Parece-me que aí está o lance: o surgimento de algo que nos faça ficar com o que é, sem pular para o subjetivo; ficar apenas no que é captado pelos sentidos.

O: Esse adestramento para a o automatismo da nomeação, da qualificação e da categorização, tudo isso se instalou de modo inconsciente.

F: Isso que também percebo. Não foi algo consciente, fomos forçados a isso.

O: O próprio modelo escolar nos joga nisso. Nunca ouve uma educação para a contemplação silenciosa do que é.

F: Parece-me que é isso que está se instalando em nós nesta etapa do processo. Estamos nos tornando cada vez mais conscientes, quem sabe isso role a qualquer instante.

O: Chegamos na percepção da trave de tropeço que é o mundo subjetivo das palavras.

F: A subjetividade não nos interessa mais. Ela nada tem a ver com o que é captado pelos sentidos. A subjetividade causa a desconexão com o que é. Algo muito semelhante as crianças que falam de coisas distintas e não ouvem umas às outras. Quero ver o indivíduo olhar para o isolamento sentido, quero ver olhar aí. Quanto ao que surge no imaginal, esquece veio! Sem saída ali.

O: Ali é só subjetividade desconexa. O imaginal não incomoda mais, ele vem e vai sem causar qualquer preocupação ou reação; foi visto que ali é uma ferramenta que está adulterada pelo medo.

F: Imaginal não incomoda nada mais.

O: Incrível chega nisso, nunca imaginei que isso fosse possível. Se me falassem, não acreditaria. Veja, isso está ocorrendo com a própria sensação do isolamento...

F: Sensação na garganta e no peito.

O: O que os crentes chamam de “arder no fogo do inferno”, é esse ardor que fica na garganta e no peito e que desce para a barriga.

F: Esse fogo é uma zia que não é azia... Vejo aqui, que o imaginal e o sensorial ainda exerce algum controle; não no nível que era, mas ainda controla. O imaginal cai matando sobre essa sensação, faz com que a subjetividade entre sobre ela. Se não fosse a observação, estaríamos pedidos. Foi aí que quebrou.

O: Mas, até nisso está ocorrendo o “foda-se”.

F: Exato! Visto que é apenas uma somatização no físico.

O: Tudo está acabando no mesmo foda-se.

F: Há subjetividade nisso também, só que mais sútil, uma subjetividade física.

O: Penso que isso deve ser parte dos sintomas da retirada da antiga identificação adulterante.

F: Uma coisa é certa: Não reagimos mais como antes.

O: Estamos em estado de imunização da identificação, entende?

F: Pode ser isso. Chegamos num ponto estreito do processo de descondicionamento, porque a mente viu a sua limitação, sua incapacidade, viu que qualquer coisa que faça para sair de si, ainda é ela; percebeu o conflito dela com ela. Ela percebe que, mesmo descrever o que se vive, não coloca fim em si, ao contrário, dá continuidade a ela. Aquilo que se observa, que se sente, não importa mais... Então não importa ser descrito, porque, essa descrição é o meio dela dar vazão a ela mesma. Só que, mesmo percebendo isso, recaímos nesse padrão de descrição, de nomeação subjetiva. Recaímos porque é horrível ficar com o que se sente. Mas a descrição é impermanente, pois, o que é postulado, em cinco minutos fica como vácuo. É ela de novo, igual a sensação. Qualquer coisa que postulamos sobre a estrutura, ela mesma cria a impressão de ser algo distinto dela, mas é do mesmo âmbito. Quando se percebe isso, tome sensorial! Aí, só resta mesmo o foda-se, visto que ela gera conflito eterno... Ela comigo, que é ela de novo, ela com ela, que parece que -somos nós fazendo. Seria cômico se não fosse trágico.

O: A equação que o paradigma nos deixou: Observação passiva = foda-se.

F: É bem isso: Foda-se surge logo após a observação passiva não reativa. Qualquer movimento, de qualquer tipo, por parte da mente, apenas dá força ao looping do pensamento, com suas buscas invejosas, ambiciosas e aquisitivas. A mente se estiver totalmente ciente desse fato… É a tal cobra venenosa! Todo esforço da mente para se libertar, implica na continuação do pensamento; esse esforço está dentro de seu próprio círculo, o círculo do pensamento, do tempo. Isso está visto. Por mais elevado que seja o raciocino, ele não liberta. O ponto mais difícil está na percepção de que não adianta nem mesmo o desejo de se libertar disso. Esse ponto é de fuder! Sabemos que existe um estado singular de ser que é conexão pura e bem-aventurança; mas sabemos também que não adianta desejar o retorno desse estado singular.  

O: Aqui é o ponto mais angustiante, a maior sensação de impotência.

F: Não adianta desejar, porque o desejo, alimenta a continuação do pensamento com sua subjetividade.

O: Ficamos como que num purgatório do imaginal.

F: Sim, querer aquilo, faz continuar isso que nos inquieta e nos isola. Isso deve chegar ao fim. Não aguentamos ficar quietos, é inquietante demais.

O: Você começará a conseguir ficar quieto com a Inquietude.

F: Eu já consigo, mas é um ponto estranho. A observação dá condições de ficar com o xeque-mate que se apresenta aqui.

O: Se não despertar uma qualidade de lucidez integrativa e libertária, permanece a estrutura medrosa, confusa, dependente, calculista, sem um sentido real de interação. Cada segundo isso se torna mais claro. Não há assertividade real na estrutura movida pelo medo.

F: Voltando à experiência deste natal, não foi fácil!

O: Aqui foi terrível, familiar alcoolizado criou situação angustiante, pesada, tensa. Mas isso não interessa; o que interessa é entender essa dificuldade de interação. Entender a percepção disso, bem como a vontade de alterar isso e a total impotência.

F: Penso que sim, entender esse crônico senso de proteção, esse recuo, esse encolhimento, essa inata e instransponível sensação de separação, porque a inquietude joga nisso.

O: Sim, todos a sentem e acabam recaindo num modo particular de isolamento.

F: A percepção do isolamento, não nos liberta do isolamento; a mente se vê incapaz, pelo exercício da vontade, de se modificar.

O: Trata-se de um mecanismo social, assim como a ilusão de afeto e amor.

F: Exato. A nossa estrutura emocional cria uma coisa que parece ser mas não é.

O: O que há de fato, é só o jogo de proteção da autoimagem; esse jogo de proteção, parece-me ser a essência do isolamento. Inegavelmente, nesses encontros, podemos constatar facilmente a carência de lucidez integrativa e libertária... estamos todos nisso.

F: Sei lá o nome da coisa, só sei que é insano. Se olhar profundamente, vemos não saímos da raiva, dos traumas, da estupidez da fúria e do recolhido ódio parental. Não saímos porque somos isso misturado. A observação fez perceber isso também.

O: Porque é uma estrutura traumatizada; ela guarda muito rancor, traumas do histórico parental.

F: A vida toda tentamos modificar esses conteúdos, trazendo uma aparência de mais calmo, mais amoroso, mais legal, menos medroso, etc. Mas somos isso!

O: Sem a menor sombra de dúvidas!

F: Aqui foi percebido que a menor tentativa de modificar o conteúdo, só cria novo conteúdo que, em última análise, é mais do mesmo conteúdo.

O: No fundo no fundo, somos contidos traumáticos medrosos reativos.

F: Tentamos deixar de ser isso, mas só criamos outra falsa imagem.

O: Sempre um personagem... pisa no dedão, aperta um pouco e você vê a real...

F: Exato! O que tem ali é raiva represada! Estamos todos nisso! A estrutura é isso!

O: Sim, e mesmo o fato de saber isso, não nos dá o poder de sair disso.

F: Não sai porque vimos que é inútil; ao tentar sair disso, só criamos outra versão de nós mesmos. Somos a bosta toda... A própria ideia de fundo do poço da solidão estrutural, é só mais uma da mesma merda de estrutura limitante.

O: A estrutura não quer mudar de fato, quer apenas dar um jeito de acabar com a inquietude do momento; mesmo a ideia de suicídio vem disso.

F: A estrutura que somos não pode mudar por si.

O: Ela muda circunstâncias, a fim de continuar protegendo sua continuidade. No que percebo, ela tenta de tudo para impedir que se manifeste o seu fundo de poço integral; ela até permite fundos de poço parciais, pontuais (droga, álcool, etc.); mas cria uma identificação com a dor, com a inquietude, que permite algum impulso emotivo reativo escapista. A identificação com tal impulso é a base do mesmo isolamento que falamos a pouco.

F: Exato.

O: Nunca tivemos condições de observar a inquietude do modo como observamos agora; sempre fugíamos para algum ambiente, para alguma atividade; não conseguimos ficar ali, sem doações psicológicas de fora, com a estrutura isolante, vendo com tanta clareza a dificuldade que ela cria.

F: Nunca houve tanta facilidade... Primeira vez na vida, somos capazes de observar o jogo todo, seja em você, no ambiente ou no todo da sociedade. O filme que estreou dia 24 na Netflix, chamado “Não olha para cima”, mostrou isso de modo cômico, essa incapacidade de conexão que estrutura a sociedade.

O: Muito bom esse filme, enfim, algo inteligente. Algo como um mergulho consciente nisso, vê que todas as falas, todos os conteúdos da estrutura, surgem do conhecido limitante, o mesmo conhecido que não libertou.

F: Não suportamos as pessoas, e elas vivem o mesmo; só que ambos disfarçamos isso. Quando estamos “bem”, suportamos por algumas poucas horas, toleramos, mas logo nos cansamos delas... A consciência está pegando tudo.

O: Não penso que nos cansamos delas propriamente, mas sim, da nossa encenação.

F: Estamos vendo de forma consciente, todo o negativo ser revelado, estamos despertando para ver o que é, estamos saindo do sono compartilhado. A observação está tornando consciente esse compartilhado senso de isolamento, nos permitindo sentir isso, sem que sejamos afetados, sem cair na lamúria, na autopiedade, sem nos envolver emocionalmente com isso... Apenas ver, estudar, perceber. Com essa observação, a enxurrada de pensamentos que sobem, e que sempre estiveram aí para a manutenção desse senso de isolamento, não nos deixa pirar. Antes da observação, racionalizávamos para suportar essa sensação; criamos uma perspectiva própria que nos permitia ficar isolados sem enlouquecer. No fundo sempre foi essa sensação, a inquietude nos jogando aí. Sempre pensávamos sobre o que havia de errado conosco, com os outros ou com o mundo, mas, sempre foi aqui... O mundo é aqui, sou eu, não é fora. Pode tomar o café agora sossegado.

24/12/2021

Nenhum esforço supera a estrutura de medo

Construímos, sobre a influência dos condicionamentos parentais, religiosos, acadêmicos e sociais, uma estrutura mental e emocional cuja base é medo. Do medo, surge todo tipo de cálculo autocentrado, os quais mantém a estrutura num mecanismo de isolamento que a impede de saber o que é paixão. Não nos referimos a paixão carnal, sensual; apontamos aqui para uma qualidade de paixão impessoal por tudo que é. O medo, além de impedir a paixão, produz todo tipo de dependência, todo tipo de apego, toda forma de preocupação excessiva consigo mesmo. Nossa experiência já demonstrou que, por ação do limitado e vacilante esforço pessoal, por ação dos cálculos autocentrados, tal estrutura não tem como mutacionar sua base que é medo. Ela pode tentar de tudo, filiações, crenças, sistemas, práticas, rituais, escolas de mistérios, substâncias, mudanças geográficas e circunstanciais, os mais diversos tipos de terapias e psicologias, mas, em última análise, nada disso lhe apresenta o poder real pelo qual possa lhe ocorrer uma significativa mutação libertária. Pela própria estrutura, a qual é medo cristalizado, não temos como saber o que é uma vida livre do medo, não temos como saber o que é amor, o que é paixão, o que é comunhão, o que é liberdade e felicidade. Quando observamos os relatos históricos, podemos perceber que os raros homens e mulheres que transcenderam a debilidade de uma estrutura com base no medo, não a transcenderam por meio de práticas previamente calculadas, mas sim, em função de uma incalculada ocorrência singular, ocorrência essa que as mais diversas culturas vêm tentado nomear conforme a influência de suas crenças, entre tais nomeações, podemos citar a descida do espírito santo, a vinda da graça, a experiência de deus, o despertar espiritual, a experiência religiosa, o samadhi, o nirvana, o estado búdico, a iluminação, entre outros. Não importa o nome que seja dado a tal experiência singular, o que importa é a sua incausada e incalculada manifestação. Sem essa manifestação, o homem não tem como se ver livre de sua base de medos, condicionamentos, manias e tendências, não tem como se ver livre de seu crônico e disfarçado isolamento emocional.


23/12/2021

Existe algo além da observação passiva não reativa?

  O: No momento em que chegamos do processo de descondicionamento, parece-me que uma ocorrência natural é se apresentar a pergunta: então, o que é a vida? Se olhamos para o que se tem por vida e não mais nos identificamos com o padrão compartilhado, é inevitável que tal pergunta se faça presente com muita intensidade. Mas, como já vimos, o nível de consciência em que estamos, não alcança a resposta, por que a estrutura só tem como sustentar sua meditação em cima do que nela se encontra estruturado. Sua meditação está sempre girando em torno do que leu, ouviu ou experimentou. Tudo ela compara, baseia ou mede conforme seu fundo.

AF: No filme, Dark City, há um diálogo em que o personagem central, John Murdock, afirma ao invasor que eles, ao tentarem compreender o ser humano, procuraram entendê-lo analisando-o pelo lugar errado: a mente. Ele afirma que só poderiam compreendê-lo, por meio do coração.

O: Mas, na mesma cena, apresenta uma contradição, pois o personagem abre um portal, não com o coração, mas com a força da mente.

AF: Só me refiro ao momento da fala em que ele afirma que a resposta foi buscada no lugar errado.

O: Eu compreendi o que você tentou mostrar; só apontei a contradição no próprio enredo do diretor. Mas veja, a estrutura vê isso e se estrutura na ideia de que agora, precisa procurar não na mente, mas no coração. Ela pode tentar chegar nisso, mas, por seus esforços limitados e controversos, ela nunca vai achar essa resposta.

AF: Isso. Total ignorância. Permanecer nela é horrível; o mais óbvio é buscar por segurança, pensamento de qualquer coisa já dá uma falsa segurança.

J: Sabe aquela expressão: "Desse mato não sai coelho?"... Então, dessa estrutura, não vai sair nada além dela, certo? Então, o negócio é sentar e esperar!!! Possuímos 1% de autonomia psicológica, mas estamos 99% zoados da cabeça aos pés. Mas estamos aí, tentando a escuta atenta, passiva não reativa, mas as saidinhas do ser ainda presentes. Ou seja, TUDO ZUADO!

O: Penso que só um insight, que não é algo da estrutura, mas que sacode a estrutura, talvez, poderia nos libertar da própria estrutura.

F: Quero ver alguém alcançar esse estado, precisamos tomar cuidado com essa busca.

O: Não se trata de busca; não tem como buscar nada.

F: Então, quero ver alguém segurar isso, se a dita solução for isso. Pode ser uma questão delicadíssima.

O: Também não se trata de segurar nada; a percepção ampliada pelo insight fica por si.

F: Não sei.

O: Também não se trata de ideia, mas de fatos que podem ser observados facilmente em seu processo até aqui.

F: O que tem é uma mente confusa e um sensorial mais ainda.

O: Tem certeza mesmo que é só isso que tem? Me parece ser uma fala adolescente.

F: De jeito algum. Veja, praticamente escrevemos sobre a mesma coisa há quase dois anos. Não leve para o lado pessoal. Estamos em looping, concorda? Como diz a Deca, vamos falar mais o que?

O: Por isso afirmo que é preciso um novo insight, algo além do insight que mostrou e estruturou o paradigma.

F: A mente é astuta... ela consegue pegar tudo para que algo faça sentido, mas não tem... não tem. O paradigma chegou ao seu fim: ele usou o próprio pensar para ver a falência do pensar. Porque ainda usaremos essa mesma ferramenta? Mesmo depurada, ainda está zuada. É o fim do pensar, não adianta ir aí, por mais que o hábito nos leve aí.

O: Estou afirmando o mesmo que você, ao apontar para a necessidade de um insight.

F: Tudo que nos tire daí vale mais a pena que ficar aí (no sentido de obter respostas ou perguntas para o que é isso, aquilo, acolá?). O paradigma não nos leva mais a lugar algum. Hoje, a estrutura é incapaz de se ver, incapaz de saber.

O: estou afirmando o mesmo que você, ao apontar para a necessidade de um insight que parte de fora da estrutura. O paradigma hoje está como as salas de anônimos, poucos antes de deixá-las, quando percebemos que nada mais tínhamos para tirar delas. Vivemos semelhante angústia, solidão psicológica e emergência.

F: No máximo, é não entrar mais nos enredos da estrutura, no máximo é observar que nossa capacidade de meditação, por meio do pensamento está criando looping. Aqui rola um foda-se até para essa angústia, solidão e tudo mais: é um dar de ombros. E daí? É só outra forma de identificação, tudo permanece centrado no próprio umbigo, tudo.

O: Sim, até esse foda-se é um impulso emotivo reativo escapista criado pela própria estrutura; mas, nem isso nos tira da inquietude produzida por ela.

F: Foda-se o foda-se também. Não tem.

O: A estrutura agora criou um looping em forma de foda-se.

F: Sempre vai haver qualquer jeito de colocar algo mais, sempre. A estrutura quer isso: mais uma frase, mais uma, outra, outra e outra... Não tem sentido, deterioração. Aqui é aguardar, se existir isso, esse insight e isso ficar, porque você teve por 10 dias e está nisso aqui. Resolveu por 10 dias; eu tive 10 minutos e também estou aqui. Outros confrades tiveram por vários dias, mas também estão encarcerados como nós na mesma estrutura... Delicado isso.

O: Sim, ela sempre vai querer trazer mais um apontamento, mais uma cena de filme, mais uma música, mais um acho isso ou aquilo que ela pensa apontar para aquela coisa singular.

F: Sempre algo mais.

O: Sempre algo a mais que leva sempre a mais do mesmo. Fazendo uma analogia, somos como seres encarcerados que estudaram todos os cantos da prisão, na tentativa de descobrir como sair da prisão, mas que nunca encontraram a saída da prisão.

F: E se pararmos aqui toda a análise? Não entraremos mais nela, porque vimos tudo, certo?

O: Parece-me outro truque, só que mais sutil. Fazendo uma analogia, somos como seres encarcerados que estudaram todos os cantos da prisão, na tentativa de descobrir como sair da prisão, mas que nunca encontraram a saída da prisão.

F: Prisão que se diz sensação. Não vejo como mais um truque. Vai até onde? Até sair? Por aqui? Pela forma analítica, não sai; pela meditação, não sai.

O: Veja, os próprios anônimos tentaram pela meditação, mas viram que algo além dela precisava ocorrer... chamaram de despertar espiritual. O passo derradeiro foi o despertar; segundo eles (apesar de não ter visto ninguém que tenha alcançado de fato isso).

F: Quero ver se chegamos nisso... Paradigma também trouxe aquilo, mas aquilo, não ficou.

O: Durante o paradigma, tive aquilo uma vez, mas não na mesma intensidade das duas vezes anteriores. Precisamos de algo que seja superior à própria observação passiva não reativa. Precisamos de algo que produza uma mutação real. Mas não temos como saber se existe ou não esse algo.

ENCARCERADOS

 O: Grande decepção o novo filme da série Matrix; só serviu para comprovar a decadência em que nos encontramos; em uma hora de filme, nem uma fala com teor significativo; tudo é só busca por lucros, bilheteria. Não há comprometimento com a verdade.

F: E nem quem está comprometido tem ela também. Tanto o pensamento quanto o sentimento estão zuados, não servem de prova para nada; na real, não provam nada. Chegamos num ponto onde não há onde se apoiar.

O: Um confrade acabou de me mandar uma poesia, na qual ele relata seu sentimento de estar trancafiado.

F: Eele sempre esteve

O: ENCARCERADO

Encarcerado neste PLANETA,

Encarcerado neste PAÍS,

Encarcerado neste ESTADO,

Encarcerado neste BAIRRO,

Encarcerado nesta RUA,

Encarcerado neste PRÉDIO,

Encarcerado neste APARTAMENTO,

Encarcerado neste CORPO,

Encarcerado em MIM......

F: Já nasceu trancado no útero. 

O: Penso que só existe um cárcere real: a estrutura egóica cristalizada em nós... É ela que cristaliza um modo de percepção limitado quanto a tudo que é, que nos impede de ver a exata natureza de tudo que é. É ela que nos mantém isolados, incapacitados de real conexão. Carecemos de uma percepção maior, saneadora, pois, não percebemos a realidade com plena nitidez, visto que os movimentos do imaginal e do sensorial, acabam adulterando a capacidade de nitidez. Nossas considerações pessoais adulteram a qualidade da percepção. Esse mundo experiencial que hoje vivemos, não é o mundo real, a vivência daquela coisa singular deixou isso muito claro.

M: Expus nessa poesia, a sensação opressora que me tomou no momento da escrita.

O: Estamos encarcerados em nossa própria bolha mental e emocional.

F: Aqui já está no ponto de foda-se também essa sensação.

O: Aqui também, muito antes de lhe conhecer.

F: Sério? Caraca! Eu te mando a real.

O: Mas permanece a emergência de algo além disso, pois não faz sentido ficar neste estado onde não há vida. Enquanto você não aprende a identificar o que passa na tela do imaginal e no sensorial, a depressão e as crises de pânicos são inevitáveis. No entanto, conforme você aprende a identificar o fluxo, SEM SE IDENTIFICAR COM ELE, sem REAGIR a ele, entra-se numa outra dinâmica. Quando você aprende também a perceber as mais variadas formas de impulsos emotivos reativos escapistas, que tentam escapar do que é percebido no fluxo, entra-se numa dinâmica mais amadurecida. Nessa dinâmica amadurecida, vemos que não temos mais o que fazer, que não temos como fugir disso e nem onde nos apoiarmos. Então, fica só um sentimento de emergência de entender o que significa tudo isso, mas um entendimento que seja DIRETO.

F: Para mim, aqui está tudo zuado. 

O: Esse é o ponto onde vejo que tanto eu, Deca, você e C. nos encontramos.

F: Acabamos entrando nisso, só que isso ai está zuado também. 

O: Se você se lembrar dos nossos primeiros contatos, sempre me referi a necessidade da ocorrência de um "insight libertário". Hoje temos a clareza de nosso estado de insanidade mental e emocional; temos também a clareza de nossa impotência para o alcance da sanidade; permanece a emergência de uma ocorrência, de uma compreensão, algo assim.

F: Para mim cai na questão: será que há isso de forma que isso fique permanente?

O: Nem entro nisso; o que percebo é a necessidade de uma compreensão maior, porque, quando ela entra, não sai mais; você não tem mais como sair da percepção que alcançou até aqui, portanto, a compreensão fica. Isso é inegável. 

F: Não discuto isso. 

O: A consciência que se alcança, torna-se permanente até o ponto em que essa consciência receba uma carga ampliada de consciência. Esse foi o movimento ocorrido até aqui. Usando os termos de M. que nos enviou a poesia, estamos encarcerados num nível limitado de consciência, apesar que essa limitação apresenta um nível significativamente superior à consciência ordinária em que todos se encontram.

F: O que a sensação prova? Porra nenhuma! Podemos escrever mil poesias, teses, livros... e daí?... Tudo parte da pessoa e sua mente insana, parte da estrutura que é insana. Portanto, a estrutura é incapaz de olhar para si de forma clara, coerente, com nitidez. 

O: Tudo isso que for escrito se encontra dentro do limitado alcance da consciência atual pela qual vemos o que temos por realidade.

F: Exato! A estrutura é incapaz de clareza, de lucidez. Ela, que é você, eu e todos, é incapaz de olhar claramente para si; pode ficar aí mil anos. 

O: Por isso a emergência de um insight que nos liberte do nível de consciência limitada em que nos encontramos.

F: Só milagre, se existir. Talvez seja esse o nível da coisa, de resto, vejo que é enxugar gelo: poesia, filmes, aulinhas, pinturas, sucesso financeiro, tudo fica nisso.

O: Exato! Se não ocorrer o despertar da sanidade, fudeu!

F: Não é que fudeu... É isso! 

O: Já há um nível de sanidade que nos permite, COMO NUNCA ANTES, alcançar uma clareza quanto ao estado insano em que nos encontramos; há uma sanidade enorme, a meu ver, em não mais se deixar ser controlado pelo fluxo do mental e do emocional; mas ainda é uma sanidade limitada. Trata-se de uma melhora, mas não de cura.

F: Exato! Qual o sentido de agora ficar olhando a insanidade, de ficar vendo o fluxo, de ficar sentindo as merdas?

O: É o que temos. 

F: Se não olharmos para fora disso, permanecemos na mesma situação inquietante.

O: Exato! Por isso afirmo o sentimento de emergência.

F: Não vejo sentido em ficar nem mais olhando a porra do imaginal e do sensorial. Por isso disse: foda-se isso tudo! Porque já sabemos que é insano! Passamos desse ponto de ficar ali olhando e tal. Essa etapa do processo já passou.

O: Sim, dali não vem sanidade. 


22/12/2021

É possível sair da estagnação por meio de um looping de ilusão?

B: Então, tempos atrás eu me encontrava bem estagnado, numa rotina de vazio total, mas agora, a coisa deu uma reanimada.

O: O que era se sentir estagnado? Porque esse se sentir estagnado é o momento que eu e Deca estamos vivendo; nos sentimos como que num platô, onde não se percebe algo além. Tudo que vemos na estrutura social, não nos traia mais, por isso nos sentimos como que estagnados.

B: Eu tive contato com algo superior, vamos colocar assim, mas aquilo não ficou e me vejo novamente na minha rotina, a qual sempre esteve baseada no medo. Mas agora eu estou fazendo algumas coisas para tentar mudar.

O: Mas o que você está tentando mudar? As situações externas? 

B: O que estou fazendo é tentar me desafiar cada vez mais, me movimentar, entende? Porque eu senti que eu estava ficando muito fixo, sem vida.

O: E o que é para você hoje, uma rotina que não é fixa e que lhe apresenta vida? O que você quer dizer por se movimentar? O que é isso?

B: Fazer coisas que me desafiem e que me tirem da minha zina de conforto. Hoje eu vejo que em tudo dá para você fazer coisas diferentes, dá para tirar você da sua zona de conforto, sair do medo. Em toda atividade, seja no local de trabalho ou então ao conversar com alguma pessoa que você percebe que só está em busca de satisfazer seus desejos egóicos. Parece-me que em toda situação, dá para você fazer algo diferente, sair do padrão de monotonia. No momento, estou apostando nisso, porque eu estava naquelas de só ver graça em algo que me fizesse sentir novamente aquilo que senti naquela experiência religiosa. Então, hoje, estou tentando ver graça em coisa do tipo como jogar baralho, entende? Acho que eu estava com um olhar errado para a vida, porque parece-me que estou chegando numa visão de que as coisas que se apresentam para mim, são o melhor que o universo tem da melhor maneira possível para que eu consiga sair desse meu entrave do medo, sair do meu estado inconsciente e me tornar mais consciente. Então, a realidade que tenho hoje aqui, com todos os problemas, é o degrau que o universo está me proporcionando para que eu mude a qualidade do meu olhar. Eu acho que essa linha de ação faz mais sentido para mim, acho que isso talvez me proporcione a possibilidade de enxergar algo além, até mesmo nas coisas ordinárias. A mesma realidade que eu tenho hoje é a que eu tinha ontem, mas ontem, eu não enxergava nada além nessa realidade. Hoje eu consigo enxergar algo além.

O: O que você enxerga além? Você vê beleza? Você vê graça? Consegue mesmo ver isso?

B: Hoje eu vi tudo igual, mas essa ideia de enxergar algo além nas coisas tidas por ordinárias, isso faz com que eu me atire no momento.

O: Mas o que é isso de enxergar algo além? O que você está enxergando de diferente hoje? Quero muito saber como conseguir isso, pois não consigo perceber nada além de uma enfadonha rotina sem sentido e sem profundidade nos contatos. O que vejo é uma enorme, uma incontável roda de condicionamentos. Não consigo, de modo algum, ver beleza nisso que está sendo cotidianamente apresentado. O que é que você está vendo além do que via antes como rotina sem sentido? O que vê agora?

B: Agora eu não estou conseguindo ver nada; 99% do meu tempo aqui, não estou conseguindo ver, mas eu tive alguns lampejos onde consegui ver a beleza no feio, digamos assim. Mas o modo como eu estava olhando estava muito zoado, mas ainda perco o foco. Mas eu já consegui ver as pessoas eu seus afazeres diários, mesmo com seus condicionamentos, e ver beleza nisso. Essa coisa de ficar buscando a iluminação... Quantas pessoas conseguiram isso e ficaram nesse estado iluminado? Eu hoje vejo essa busca por um estado supremo de iluminação como mais uma ilusão. Essa iluminação não é fixa, ela vem e vai. Eu vejo o ser humano como uma ponte entre o céu e o inferno... veja, o ser humano é a ponte; ele está sempre conectado entre o inferno e o céu. Fazendo uma analogia, nessa ponte, se encontra a nossa identidade. Quando o ser humano deixa de lado a sua identidade, ele se ilumina. Eu estou tentando enxergar assim.

O: Você quer dizer que está se condicionando a ver as coisas desse modo?

B: Não sei se isso é um condicionamento...

O: Não é o que a sua mente está contendo agora?

B: Não sei!

O: Isso é uma tentativa ou é algo natural seu?

B: Sim, estou tentando, mas, assim... Eu penso que o condicionamento é algo que vem sempre do externo, algo que vem da cultura.

O: Independente da influência da cultura, você cria também seus próprios condicionamentos. Você acabou de dizer que está tentando, mas que não consegui em 99% das tentativas, ver algo de diferente do que via, como conseguiu ver num momento de lampejo. Quando você me afirma que “está tentando”, isso não é o mesmo que dizer que está se condicionando? Você não está colocando uma condição para si mesmo? Fazer assim e não fazer mais assado? Não vê que isso é uma condição imposta e que não parte de algo natural?

D: A mente falando: Agora não verei mais como antes, verei de forma diferente! Não percebe que é a própria mente no comando, tentando sair do sentimento de estagnação e do vazio da rotina em que ela se percebe inserida?

O: No nosso momento, meu e de Deca, não brigamos mais com o que se encontra estruturado na cultura social, mas, para nós, não vemos graça e beleza em nada do que se encontra estruturado; nada nos entusiasma, nada nos atrai. Nada nos impulsiona ao ponto de colocarmos nossa energia e nosso tempo naquilo. Apesar de não pararmos de observar, não encontramos nada que faça real sentido. E, com base nas vivências tidas do estado incondicionado de ser, sentimos tudo isso como uma grande ilusão, algo parecido com a expressão “Matrix”.  Isso é uma ilusão e não temos mais como nos apegar nisso que vemos que é ilusão. A maioria se apega nisso, porque desconhecem a grandeza e a realidade daquilo. Mas a realidade aqui, é que a felicidade, a liberdade, o amor e a comunhão permanece aqui. Aqui não tem nada de realização, iluminação ou conexão real; só não entramos mais em conflito nem com as situações internas e nem com as situações externas. Se isso está funcionando para você, ficamos contentes por isso, mas, para nós, não tem como. Eu e Deca, por mais que sejam os nossos esforços, não conseguimos ver graça e beleza no que se apresenta ao nosso redor (não estamos falando da graça e beleza que são produtos do condicionamento cultural; falamos da Graça e Beleza Reais). Seja a conversação social, sejam as tradições, sejam os assuntos religiosos, filosóficos ou espiritualistas, tudo isso perdeu seu poder de encantamento. Não temos mais como investir em nada disso; só entramos nisso quando estritamente necessário, quando não há formas de escapar da situação. Tudo se mostrou pequeno demais depois da grandeza daquelas vivências inusitadas, daquela vivência singular. Participamos dos núcleos familiares e de trabalho, mas, percebemos a superficialidade e a ilusão de quase tudo que ali é apresentado... rotinas e abordagens que se mostram sempre condicionadas, repetidas, imaturas e superficiais..Não há a menor possibilidade de se apresentar algo disso que nos foi apontado quando nas vivências daquele estado singular de ser. Não tem como falar sobre isso porque as pessoas não acessam, isso não faz parte da cultura estabelecida; não há abertura para isso, o cérebro não alcança e, com poucas palavras, se protege por meio da letargia.  Por isso que hoje afirmamos nos sentirmos num platô, num ponto de estagnação; estagnamos num ponto de percepção da realidade e não há a menor possibilidade de voltarmos ao ponto anterior de percepção. Não temos como nos forçarmos a ver beleza no feio... Ou essa beleza é percebida, ou não. O fato é que hoje, não conseguimos ver beleza. Temos que ficar com a realidade, por mais angustiante que seja. Não tem mais como se agarrar em achismo ou práticas que já se mostraram ilusórias. Todo esse lance de tentar alimentar apenas bons pensamentos, ou ver apenas o lado bom das pessoas e circunstâncias, aqui, não rola. Se isso funciona para você, ficamos contentes, porque não é nada agradável ficar com esta inquietude de base, mas, para nós, não isso funciona.

Hoje não tem como fazer uso de qualquer coisa para tentar aplacar essa inquietude básica; as próprias reuniões no Paltalk, depois de observadas, se mostraram como ilusórias tentativas de sair dessa inquietude. Claro que nos ajudaram a ter uma percepção melhor do mecanismo da estrutura mental e emocional condicionada, mas, não proporcionaram a transcendência de seus limitantes condicionamentos. Nada disso nos libertou. Não sabemos o que é felicidade, amor, liberdade, comunhão, compaixão... tudo isso são só conceito herdados somados a tentativas vãs de alcançar seus significados. O que temos aqui é a inquietude, sem acrescentarmos mais inquietude à inquietude original. Nem tentamos colocar coisas ou ações calculadas para tentar superar tal inquietude, tipo, crenças, livros, escolas, diversificação de consumo ou coisa parecida.

B: Penso que não se trata de um condicionamento, mas sim, de uma percepção particular.

O: Você não precisa ficar com nada do que estou lhe falando, muito menos precisa me provar algo. Se isso realmente está funcionando para você, ao ponto de você poder se olhar no espelho e dizer para si mesmo que é feliz, que é livre, que ama e que realmente sabe o que é compaixão e comunhão, por favor, esqueça-nos e viva isso! Nós não vivemos isso!

B: Penso que a expectativa de viver isso, é uma forma de condicionamento que talvez esteja impedindo de você viver isso.

O: Você está com uma insuportável, quase que enlouquecedora dor de dente... Como não ter expectativa de que a experiência com um dentista possa acabar de vez com ela? Se estamos com uma dor crônica em nosso estado de ser, como não alimentar a expectativa de encontrar algo superior aos nossos esforços, que possa acabar de vez com essa dor? Como não querer acordar logo cedo, sem ser despertado pela inquietude (a qual muitas vezes é percebida até durante o snho)? O que sentimos é o looping de uma rotina sem beleza e sem sentido. Não temos mais como ficar contando historinhas para nós mesmos; temos que lidar com o que é. O que é, é essa estrutura isolante... Tudo que você está nos dizendo, já tentamos mil vezes antes e não resultou no calculado... Ver beleza nas pessoas e circunstâncias... fica tudo só no nível conceitual, não dá liga real.

B: Não é disso que estou falando! Estou falando de algo que não é produto de um esforço racional. Trata-se de uma questão de você “trabalhar a sua energia”, conforme a sua capacidade. Com certeza, racionalmente, não sentimos nada. Vou dar alguns exemplos de coisas que tenho feito e que percebo que me fazem bem: me alimentar bem, que é algo que faz a energia fluir de modo saudável. Todas as manhãs, estou praticando dança, e isso traz uma energia legal para o corpo. Resumindo, estou buscando por ações diferentes.

O: E quando você se encontra sem essas ações calculadas? Já experimentou ficar sem essas ações, que eu qualifico de drogas energéticas? Quando fica só consigo mesmo, qual é a realidade mental e emocional?

D: Porque tudo isso acaba sendo novos modelos de doações psicológicas externas, com as quais ocorre a narcotização momentânea dos sentimentos.

O: Quando você acorda, sente-se pleno pelo simples dato de estar respirando? Não vejo mais sentido em ficar procurando coisas para tentar modificar a natureza da energia sentida.

B: Entendo bem isso que você está dizendo. Mas qual o sentido que querer estar bem e não fazer nada?

O: Eu não estou lidando mais com conjecturas; se esse incausado bem-estar se apresentar, quando se apresentar, verei o que ele me apresentará para fazer ou não fazer; o fato é que esse bem-estar agora não está aqui. Esse é o fato! Conjecturas são apenas fugas ao fato. Claro que esse processo de descondicionamento nos deu condições de sermos mais sociáveis com as pessoas, de estarmos com elas sem cobrá-las por seus condicionamentos; mas é também impossível não ver com clareza tais condicionamentos e a ausência de contato real. Não há afinação de propósitos e de percepção da realidade. Claro que gostaríamos de fazer coisas diferentes e que se mostrassem com real sentido, mas, até aqui, não as encontramos. Olhamos, olhamos e olhamos e nada nos atrai, percebemos tudo como variações levemente modificadas do já manifesto. Basta uma olhadela e a consciência já aponta o falso, já mostra que não resulta, que não é por aí.

Hoje temos a claríssima percepção de que a nossa qualidade de bem-estar não pode estar dependente de nenhuma ação ou circunstância externa; não pode estar associada a qualquer tipo de prática calculada, porque, se assim for, se tal prática faltar, igualmente faltará o bem-estar. Queremos saber o que é estar bem pelo simples fato de abri os olhos, ou de sentir o sopro nas narinas... um bem-estar que não tem causa, que não é produto de um cálculo autocentrado. Não temos isso hoje! Temos boas pessoas e circunstâncias ao nosso redor... todos com seus condicionamentos e limites culturais, mas todos do bem! Não temos problemas circunstanciais, o que temos é essa inquietude de base, a qual impede a real conexão. Tudo fica no nível dos conceitos, no nível do mental, não há conexão real ou percepção da beleza real. E vivemos mais que uma vez a conexão com aquele estado singular onde tudo é beleza e maravilhamento, onde tudo é graça e vivacidade... como não querer aquilo novamente? Como? Como ver inteligência em tentar ver beleza onde não conseguimos ver beleza, se existe um estado sem esforço, onde tudo é visto em sua beleza singular? Quem viveu isso, numa intensidade tal, não tem mais como se contentar com esse esforço vacilante que, no máximo, só tem o poder de ver a beleza que não é beleza de modo algum, mas sim, um compartilhado condicionamento conceitual. Esse esforço é que já fazemos há muito tempo, lidar com o que tem pra hoje, tentando dar o melhor de nós mesmos, não fazer exigências dos demais, não julgá-los...  Mas temos que ser honestos: isso é um porre! O que tem aqui são dois seres inquietos em busca de uma resposta libertária. Nessa busca, passamos por tudo que está aí, crenças, escolas esotéricas, grupos espiritualistas, o próprio paradigma holotrópico... tudo isso em seu devido momento, se mostrou como algo limitado, sem o poder de transcendência. Serviu por seu tempo, mas já não dá mais liga, já não dá a antiga ilusão de conexão. Então, hoje, existe algo que nos conecte? No momento, não! Aqui não tem depressão, mas também não tem mais a possibilidade de ficarmos contando historinhas para nós mesmos. Não tem como se sentar com o outro que vem sempre com os mesmos papos socialmente alimentados, coisa como Lula, Bolsonaro, Palmeiras, investimentos na bolsa de valores ou em bitcoins, e ver graça nisso. Não tem como.

B: Estou tentando com isso, salvar o rolê!

O: Se isso funciona para você, vai fundo! Se ao acordar pela manhã, ao se olhar no espelho enquanto escova os dentes, e vê brilho real nos olhos refletidos no espelho... Que bom! Mas aqui, não tem isso! O que vejo aqui é um cara inquieto.

B: Aqui ainda não tem esse brilho real.

O: Temos dito que parece ser necessário algo como um update na capacidade de observação da realidade, algo que não seja um cálculo a mais da mente, mais um de seus truques. Se ocorrer isso e eu ver beleza, tudo bem! Mas, práticas calculadas! Para, estou fora! Quero saber o que é viver em plenitude; sei que isso existe porque tive três vivencias em tal qualidade de ser. Sei que isso é possível, que é real. Não entendemos o porquê desse estado incondicionado de ser não permanecer; mas ele existe, definitivamente existe. Trata-se de um estado de ser em que você não se vê nem mesmo condicionado ao próprio corpo, nem ao tempo, nem ao espaço e nem a dualidade conceitual de bem e mal, feio e belo... nada disso existe ali!

D: Só existe o Belo e tudo está embutido nele!

O: Sabemos que isso existe, assim como sabemos que o que se apresenta aí, é um porre! Um dos questionamentos que compartilhamos é o de qual foi o sentido de termos tido a vivência daquele estado singular, com sua incalculável abertura de consciência, e voltar para este estado condicionado, no qual hoje temos a clareza da percepção de sua limitação, de seus condicionamentos, de sua insanidade, e não conseguir se ver livre de tudo isso, de se ver prisioneiro de um looping de coisa sem sentido e sem beleza real? Qual o sentido de saber nomear muito bem as várias facetas da estrutura condicionada, sem ter o poder de transcendê-la? Como se contentar com o gosto de mofo quando nos deliciamos com a doçura do mel?  Não há como dizer para si mesmo que aquela vivência foi mera ilusão, uma espécie de delírio; cada célula do corpo grita em defesa de sua realidade, que é a única realidade.

B: Mas, com base no que os outros deixaram escrito aí, você acredita que é possível chegar nesse estado e nele ficar pelo tempo que lhe restar?

O: Não me interesso mais pelo que os outros homens disseram ser possível ou não. Sei que aquilo é real e que é o nosso estado incondicionado de ser; não tem nada de Deus, vinda do espírito santo ou do raio que o parta! Aquilo é você, sou eu e tudo que é! O que disse Buda, Jesus, Ramana, Krishnamurti, quem quer que seja, não significa mais nada para mim. Precisa ocorrer aqui, na totalidade das células cerebrais, uma nova capacidade de percepção... Algo interno, que não depende de nenhum cálculo, nenhum esforço, nenhuma prática ritualística, nada dessas invencionices que o homem vem tentando ao longo de séculos, de modo infrutífero. Tentamos muito disso tudo e nada se mostrou, de fato, funcional. Essa inquietude básica não pode ser plenamente silenciada com nada do externo. O que ocorreu naquelas vivências singulares, não veio de fora... aquilo éramos nós e não dependeu de nenhuma ação calculada. E do mesmo modo que veio, se foi... Mas não tem como negar a beleza, o maravilhamento, a dimensão sensorial daquilo, a vivacidade, o brilho, a intensidade, o abarcamento, a amplitude, a magia, a comunhão e conexão de tudo aquilo... E se ver aqui, nessa vidinha rotineira de coisas superficiais onde ninguém se relaciona de fato com nada? Onde todos se esforçam inutilmente para se conectar? Não vejo ninguém livre, ninguém sabendo o que é felicidade, liberdade e amor... cada um prisioneiro de seus medos particulares... Onde a compaixão é só um conceito nos lábios sem cor... Não tem como, esse teatro não dá mais liga! Essa é a pergunta que deixo para você: ao acordar, pela manhã, quando olha para o teto, sente tesão mesmo de sair da cama? Sente-se grato por um novo dia?

B: Não!

O: Então, confrade, tem algo errado aí! Algo aí no seu discurso, não bate! Aqui, nada do que está na sociedade, me atrai. Um leve lance do olhar e o falso logo é percebido! Não dá, por aí, não vou!

B: Você afirma que essa coisa precisa vir de dentro, então, é falso quando busco algo no externo que me produza alguma satisfação?

O: Se você está buscando por algo externo que substitua sua insatisfação de base por uma esperada satisfação, então, isso é falso... Não há diferença disso com o uso da bebida, da droga, do sexo, da busca de poder. O fato é a insatisfação crônica; é ela que é a natureza exata que está motivando a ação. Qual a diferença de você está buscando satisfação na dança e o meu vizinho estar buscando no uso da maconha? Não vejo diferença, a não ser nos critérios de valores de certo e errado que cada um carrega; o movimento é igual, só foi diferente o tipo de droga anestesiante.

B: Mas se você buscar, por exemplo, no sexo, de um modo equilibrado, buscando por prazer associado ao amor...

O: Mas você sabe o que é amor? Sabe mesmo? Você ama?... Não adianta ficar com historinhas, é preciso ver isso com muita seriedade porque se trata da sua própria vida... Você sabe realmente o que é o amor? Por mais afinidade que temos com as pessoas com quem nos relacionamos, você não percebe que sempre permanece ali um hiato, uma distância, algo como uma bolha que nos isola, que nos impede de se sentir um só com o outro? Sempre fica uma distância, um hiato, sempre é percebida a ausência de conexão real. Há, sem dúvida, um bem-querer histórico, digamos assim... há uma história comum que gera um apego, uma preocupação, mas, sabemos de fato o que é amor?

D: O que há é o condicionamento de que temos que amar essas pessoas que fazem parte do nosso círculo histórico.

O: Não temos mais tempo para brincar de amor... Nós tentamos de tudo, buscamos de tudo para ver se conseguíamos sair dessa bolha isolante, mas nada se mostrou realmente funcional. Tudo é bunitim no início, mas logo se mostra falso.

B: Você me pergunta se eu sei o que é o amor... Você já sentiu uma conexão maior com alguém, algo diferente do ordinário?

O: Só senti isso dentro daquela vivência inusitada. Sempre ocorreu no máximo, uma atração pelo físico ou por alguma afinidade de busca. Mas esse sentir profundo, tenho que ser franco, eu desconheço. Algo ocorreu comigo em minha historia que me tornou assim, e confesso que estou cansado da percepção desse crônico isolamento emocional. Vejo as crianças e a mente, com seus condicionamentos, diz: Que linda! Mas eu não sinto essa beleza! Fica só no nível dos conceitos mentais. Não ocorre a conexão real, sempre é percebido um hiato. Outro dia eu conversava com uma senhora da terceira idade, e ela me dizia que sentia essa distância com os próprios filhos, tanto por parte dela, como por parte deles; ela mesma afirmou que não sabe o que é o amor e que não sente que seus filhos sintam amor real por ela; ela consegue ver que muito do que fazem por ela, cai no condicionamento ético, que não tem nada de natural ali, no máximo, um derrame de apego. Esse é o nosso momento aqui e, confesso que o que mais queremos, é saber o que é a realidade do amor, o que é a plenitude no viver; viver não pode ser só isso que se mostra pequeno demais! Amor, felicidade, liberdade, compaixão e comunhão, hoje são só lembranças daquelas ocorrências naquele estado singular; mas aquilo não ficou. Em minhas pesquisas, não encontrei um homem que afirmou ficar nesse estado singular; o máximo que encontrei são relatos de vindas esporádicas daquilo. Um exemplo disso é o que Krishnamurti relatou em seu breve diário. Não sabemos se é possível viver naquele estado incondicionado de ser, mas sabemos que ele é real. Conjecturar sobre aquele estado singular, ou sobre amor, liberdade, felicidade e comunhão real, é algo que também se mostrou sem sentido algum. Conjecturas não resolvem; bafo de boca não cozinha ovo! O que conta para mim é a pergunta: eu sei neste instante o que é isso em meu viver? Vivo isso agora? Não! Eu vivo a percepção da ausência disso, essa distância que permanece em tudo... Vejo o pôr do sol, ou o movimento de uma criança e a mente conceitualiza sua beleza, mas o coração não sente essa beleza. Eu abraço e sou abraçado, mas não sinto a conexão.

B: Eu entendo o que você está falando. Percebo que só nos relacionamos conosco mesmo, mas, como você sabe, todos nós temos uma centelha divina...

O: Não! Joga fora tudo isso! Não sei nada disso! Isso para mim é ranço de crença. Não entro mais nesse tipo de conversa.

B: Veja, existe algo muito louco que você também já sentiu.

O: Aquilo não era algo, aquilo era você mesmo, sem condicionamento algum. Não tem nada de centelha divina, Deus, descida do espírito santo ou o que quer que seja!... Aquilo era só você em seu estado natural, em sua exata natureza incondicionada. Nada mais que isso!

B: Eu vejo que tudo que é externo é aquela coisa louca se relacionando consigo mesmo. Porque, no meu ver, a fonte de tudo é essa energia divina.

O: Ok! Se é assim, então, me responda: porque não existe felicidade e maravilhamento aí agora, em sua vida? Esse é realmente um belo discurso, mas, ele funciona? Se funciona, por que a distância é percebida aí? Por que não existe comunhão? Por que você permanece se relacionando apenas consigo mesmo? Só me responda as perguntas, porque não tenho interesse nas novas crenças que você está sustentando para si mesmo. Quero lidar com os fatos, com o que é. Você é feliz? Você é livre? Você está em conexão real com alguma forma de consciência? Você se vê, realmente, um com tudo que é?

B: Não! Não vivo nada disso!

O: Então, qualquer coisa que você quiser me falar aí, é só mais da estrutura.

B: Cara, eu acho que tudo isso que você está falando, essa coisa de amor e comunhão, tudo isso não passa de ilusão. Ninguém pode dizer eu amo, eu sou feliz, porque o amor e a felicidade não são coisas estáticas.

O: Então, você mesmo afirmou que você “acha” isso... só mais uma crença levantada por conceitos que colheu por aí. Você acha... perceba seu novo tipo de crença aí... Por isso que estamos nos afastando cada vez mais desse tipo de conversa que só se sustenta numa disputa de crenças, de incertas certezas emprestadas. Achar não é o que é! Não me contento mais com achismos, quero o que é! Não vejo como insanidade, querer o real ao invés do que se acredita ser o real.

B: Entendo! Mas só que o meu achismo se baseia naquilo que eu vivi um dia no passado.

O: Mas isso é algo morto, também não serve, visto que não se encontra aí agora, nesse instante. A lembrança do melhor dos baquetes não mata sua fome de agora.

B: Mas se eu for por essa sua linha de raciocínio, tudo acaba se mostrando sem graça.

O: Uma vez me veio uma pequena poesia: É preciso que tudo perca a graça, para que surja a Graça capaz de trazer graça para tudo que se mostra sem graça. Então, já não me esforço mais para ver graça: ou tem Graça ou não tem graça. Simples assim! Já não dá mais para ficar contando historinhas para mim mesmo. Não dá mais para ficar me segurando em qualquer tipo de crença ou de achismo. Bate o olho no espelho aí e vê se tem alegria mesmo, espontaneidade no viver. Se não tem... não venha me tirar do meu silêncio barulhento. Qual é a real do seu estado de ser, neste instante? Essa é a pergunta que me parece ser fundamental. O estado de ser não está nem aí com crenças e achismos. Isso é o que percebemos aqui. Sinto aqui que é preciso ocorrer algo, uma mutação na capacidade de percepção da realidade. Sem dúvida que ocorreu uma significativa mutação que nos deu condições de perceber muito da estrutura condicionada, seja a pessoal como a coletiva (a maioria nem sonha com isso); só que a qualidade de percepção alcançada, não nos deu o poder de transcender o que está sendo percebido como falso, como limitante. Essa capacidade de percepção nos mostrou a insanidade pessoal e coletiva, mas não nos mostrou o que é a sanidade. Só instalou uma sanidade que tornou capaz a percepção da insanidade, mas ficou nisso. Preciso ocorrer um upgrade na qualidade de percepção, a qual nos tire dessa percepção de terceira dimensão e que nos jogue naquele estado que não pode ser dimensionado de modo algum.

B: Entendo.

O: Cada um sabe muito bem o que realmente se passa na mente e no coração, e o que está buscando para tentar mudar isso que percebe, e tenho certeza, que aquilo que pensa e sente, não tem nada de gostoso. Não tem mais como brincar de ser feliz! No máximo, o que vemos por aí é tido por “bacaninha”, pois, não nos toca de fato. Aqui existe uma emergência pelo real.

B: Entendo bem o que você está dizendo e estou tentando algo para não chegar nesse ponto em que você se encontra.

O: Isso me faz lembrar a postura do personagem Cypher do filme Matrix, querendo permanecer na busca de prazer para não ter que viver o que Morfeus vivia. Este mês está estreando o filme Matrix 4, e eles estão falando sobre o looping das coisas repetidas, coisa que estamos falando há mais de ano. Eles estão usando inclusive a mesma expressão que aqui usamos: “looping da mesmice”. A fala no trailer do novo filme Matrix: “Vocês já perceberam que existe um looping de coisas repetidas todos os dias?”... Não é possível que só eu, Deca e mais dois confrades com quem trocamos diariamente, estão sentindo isso.

Não deixamos de fazer as coisas que se mostram necessárias no sistema; participamos dos eventos familiares, mesmo não crendo mais em seus valores tradicionais; só que nada disso nos toca mais, não produz entusiasmo real, na real, sinto como algo bem cansativo. Do jeito que entro eu saio: vazio! Porque ninguém está falando algo que me toque de fato, que me chame a atenção, que me deixe com um gosto de quero mais. Só escuto mais e mais do insatisfatório conhecido; assuntos sobre ruas sem saída pelas quais já entrei. Nada ali significa algo real. Confesso que continuo com a ânsia de encontrar alguém que me apresente algo que eu não tinha pensado ou vivido antes, mas, não encontro esse alguém.

B: Eu preciso me apegar em alguma coisa...

O: Por que você precisa se apegar? Por que não pode permanecer livre? Não seria a voz do medo que se encontra nessa busca de algo para se apegar, para que a vida se mostre com sentido?

B: Quando você fica estático, você começa a estagnar, porque a coisa começa a perder a graça inicial. Para mim, o que estou tentando hoje é me manter em movimento.

O: Já vive esse tipo de crença no movimento calculado, só que hoje, isso não faz mais sentido algum. Cansei de ficar pulando atrás de atividades; quero saber se existe um estado de serem que eu possa estar bem comigo, independentemente de qualquer circunstância externa, de qualquer doação de fora... se é possível ou não.  Porque, se não for possível, essa existência não faz sentido para mim.

B: Eu acredito que a vida só vai ter um sabor legal se você souber fazer usado adequado das coisas que se apresentam para você. Isso que estou enxergando hoje.

O: Olha no espelho e me diz se o cara que você está vendo, possui brilho no olhar. Você nunca mais vai olhar um espelho do modo como via antes dessa conversa. Não tem como enganar o espelho. Se não tiver realidade no viver, o espelho vai ficar cada vez mais pesado. O que mais quero é encontrar alguém que me diga: “Encontrei algo além do que você está apontando e que se mostrou realmente libertário”. Só que não acho isso!

D: Nós estamos tentando manter relação com as circunstâncias externas, mas, o buraco da insatisfação continua aqui e, depois da observação, tem se mostrado cada vez maior. Não encontramos a possiblidade de uma conexão real, tanto daqui para lá como de lá para cá. Observo facilmente que o que está aqui, está lá. Só que os demais ainda estão buscando pelo movimento enquanto nós já fizemos uma varredura nesse movimento de busca. Nada do que buscamos, nenhum dos nossos movimentos se mostrou realmente libertário, nada nos devolveu o brilho do olhar, nada trouxe uma conexão real. Nada tirou aquela sensação de isolamento, aquela sensação de vazio. Hoje é muito rápida a percepção do falso, o espírito que realmente está gerando o movimento, tanto aqui como lá. Não existe relação real, fica tudo só no nível dos cálculos autocentrados. Hoje isso é percebido muito rapidamente e sem qualquer esforço de nossa parte. Até o próprio paradigma ficou para trás, pois ele cumpriu sua função e também não nos libertou. Sem dúvida que ele nos possibilitou uma incalculada expansão na qualidade de percepção dos condicionamentos pessoais e sociais, mas não nos libertou da estrutura condicionada.

O: O paradigma nos deu condições de entender como essa estrutura foi criada, alimentada e cristalizada, mas não nos deu o poder de transcendê-la a pleno.

D: Não possibilitou uma significativa mutação psíquica.

O: Aquela vivência singular nos mostrou a ilusão da percepção onde se tem o interno e o externo como duas realidades separadas, mostrou a ilusão de espaço e tempo, a ilusão de observador e coisa observada, a ilusão de nós como uma pessoa separada das demais pessoas e coisas. Existia uma coisa única. Aquilo nos mostrou a ilusão do que hoje temos por realidade; isto que vivemos hoje não é a realidade real; trata-se de uma realidade encapsulada numa lógica e numa razão condicionadas ao seu limite de capacidade de percepção da realidade.

D: Exatamente! Não é real o que temos por real!  Naquela vivência singular, não existia a dualidade belo e feio... tudo era só beleza. Aquilo está acima dos conceitos de bem e mal, dentro e fora... está fora de toda forma de conceitualização.

B: Não sei se é condicionamento, mas eu não enxergo isso aí. Eu enxergo que estamos vivendo essa realidade que você fala, só que de uma maneira diferente.

D: Desculpe-me, mas não vivo aquilo! Não vou entrar nessa sua historia. Sei bem o que vivi e o que vivo hoje, nada tem a ver com a realidade daquilo. Se isso funciona para você, beleza! Para mim não dá! E eu não vejo brilho no seu olhar!

O: A observação amadureceu a tal ponto, que apenas duas ou três palavras eu já posso perceber as crenças, os achismos e os condicionamentos, todo o enredo do cálculo autocentrado na lógica e na razão condicionada. Já percebo o terreno em que o indíviduo está pisando, terreno que já pisamos antes e que se mostrou disfuncional, ilusório. Não adianta vir aqui e me dizer que a felicidade não é eterna... esses achismos não me interessam, pois eu vivi e sei o que é. Todas as palavras hoje perderam seu significado, se mostram muito pequenas. Tive aquilo por três vezes de modo muito intenso. Não tem como negar, porque eu soube o que é a felicidade, a liberdade, o amor, a comunhão, o que é a ilusão de dentro e fora, belo e feio, a ilusão de se acreditar ser uma pessoa separada das demais pessoas, eu sei de tudo isso. E sei também que o que vivo hoje, ainda é um estado de sonho, podemos até chamar de um estado de sonho lúcido. Nada do que vejo hoje, me apresenta liberdade, felicidade e comunhão. Eu não consigo ver beleza nessa estrutura, tanto interna como externa. É isso! Não vejo beleza no modelo social que nos obrigaram a participar, com sua jornada de trabalho absurda.

B: Eu vejo aqui que a vida é tipo uma escada circular, onde cada degrau é feito de uma ilusão; o problema é você ficar parado na ilusão; agora, se você está em movimento na ilusão, tudo bem.

O: Qual a inteligência de ficar saltando de ilusão em ilusão? Qual a inteligência desse movimento? Eu não quero esse movimento para mim! Segue nele você!

B: Isso faz sentido para mim!

O: Ok! Mas para mim, não tem sentido algum! Duas palavras e eu já vejo o absurdo, a ilusão. Qual o sentido de passar uma vida inteira saltando de ilusão em ilusão, só para manter a ilusão de que se encontra em movimento? Que movimento é esse que não apresenta o real e somente ilusão?

D: Continua a mente condicionada com base no medo, com seus movimentos ilusórios! É a mente que fica sempre pedindo pelo movimento, enquanto que homens como Ramana Maharshi, afirmam que aquele estado singular se apresenta pelo não ação (apesar que querer a não ação, já é uma forma de ação).

O: Cansei de pular de ilusão em ilusão, de adulteração em adulteração. Estes 30 anos de busca me possibilitaram perceber rapidamente os impulsos ilusórios. Quero achar algo com real sentido, mas, só me deparo com opções ilusórias, tudo dentro do mesmo modelo condicionado e condicionante. Tudo dentro do mesmo script. Não tem mais como investir em nada disso. Todos se movimentam para não se permitir a estagnação que apresenta a estrutura interna de medo, vazio, inquietude, contradição e oscilação de humor. Quero saber se é possível acordar pela manhã e sentir algo diferente e significativo, que me tire daquele looping de pensamentos contraditórios e conflitivos, ou da rotina enfadonha. Percebo que ninguém tem o interesse de questionar isso e, muito menos, de se ver livre de sua rotina, mesmo que ela seja enfadonha. A pandemia mostrou o que a quebra da rotina gera nas pessoas: a depressão, a falta de sentido e a percepção de que não existe amor real nas relações. O número de divórcios no mundo foi enorme. Cansamos de tudo isso e sabemos que estamos estagnados, que chegamos como que numa rua sem saída. Não tem mais o que ser feito e não tem mais onde se apegar. Ou acontece algo inusitado, algo que produza a capacidade de perceber algo que não foi percebido até aqui, ou então, é isso: permanecer no mesmo movimento que já se mostrou ilusório, limitante. Sempre tentando ver o melhor, mas, não tem mais como não ver o falso, não tem como não ver a exata natureza que está movimentando não só nós como aos demais. Cada um está sendo levado por seus cálculos autocentrados, cuja base, é medo.

D: E para nós que temos a observação, mais nos é cobrado quanto ao nosso movimento de ação. O outro está no automático, sem essa qualidade de percepção, e ele solta as coisas sem pensar, se entrega aos impulsos emotivos reativos; nós temos que nos conter na força. Se você achar algo significativo, estamos por aqui. Aqui continuamos num looping de rotina percebida como sem sentido. Beleza? Um abraço!

B: Valeu! Outro!