25/05/2021

Sobre o avançado platô de percepção da realidade – Parte 3

O: Se você observar bem, perceberá que o mecanismo da nossa estrutura mental emocional condicionada, se alimenta da preocupação excessiva em sentir um bem-estar que se desconhece, ou de manter situações que morremos de medo de perdê-las. Apesar dessa preocupação, ela nunca alcançou esse tão almejado bem-estar.

F: Exato: ela só projeta imagens, pensamentos, não ficando com o que tem de fato. Ela criou um trampolim para sair do desconforto, que é a ideia de sair do desconforto pela ação do próprio pensamento

O: Justo, pelo pensamento que é, além de condicionado, limitado.

F: Não tem saída mesmo.

O: Parece mesmo que não, apesar do pensamento não parar de gerar sugestões de saída que se contradizem tão logo se manifestam.

O: O samba doido que o imaginal lança o tempo todo: tudo vai dar certo, nada vai dar certo; tudo vai se harmonizar, tudo vai colapsar. O samba enredo não sai disso. A identificação com o enredo é que produzia depressão ou qualquer forma de neurótica e emotiva reação escapista.

F: Na depressão era a identificada essa mesma sensação que sentimos e com esses pensamentos que estão aqui ainda passando...

O: Tanto a depressão como a neurótica e emotiva reação escapista nunca colocaram fim à estrutura. Perceba que se trata de um enredo feito de imaginados monólogos consigo mesmo ou de conversações com terceiros, como tentativa de solucionar o estado de inquietude.

F: Exato, pensamentos criam o inimigo, montam o discurso, desse surge a somatização, quando você vê, foi palhaçada de novo... só no palco imaginário. Tanto eu quanto o oponente não existimos de fato... era um filme... Uma criação do imaginal.

O: Sempre é o mesmo tipo de enredo neurótico que tocou durante toda vida. Só que depois que passa o enredo, fica muito fácil de perceber o quanto somos emocionalmente imaturos, o quanto somos seres inseguros, complexados. Temos uma realidade emocional que não condiz com nossa idade cronológica. Por isso que muitos de nós entram em pânico só de pensar na possibilidade de se verem sem as situações que nos são conhecidas. Mesmo que o imaginal, em muitos momentos de sua agitação, crie a sensação de que essas situações são intoleráveis, quando, passada a sua agitação, esse próprio imaginal lança as imagens de um final feliz dentro dessas mesmas situações. O Bizarro está nessa contraditória dualidade projetada, a qual é a natureza exata de toda neurose de dependência. Aliás, pelo que percebo aqui, quando o imaginal está de boa, nada dessas situações causam desconforto, ao contrário, em boa parte, chegam mesmo a ser prazerosas, por isso que as mantemos até então. No entanto, quando o imaginal se agita, quase sempre por meio de conceitos de certo ou errado que leu ou ouviu, que adquiriu de alguma doação psicológica de terceiros, é aí que o bicho pega. Mas, observe aí, quando o imaginal se aquieta: cadê aquele bicho que queria lhe pegar e comer tudo que foi construído até então? Veja, em todas essas agitações do enredo, nada de real está acontecendo conforme o enredo. Só que no momento da agitação, o enredo se mistura como sendo a própria realidade. Se você se identifica, logo escorrega, produzindo alguma forma de adulteração na passarela do cotidiano.

F: É claro que entramos em pânico só de pensar. Só que não tem nada acontecendo de fato, não há nenhuma “prova do crime”, nenhum vestígio, nenhum fato, zero, tudo é ficção.

O: Para cada um de nós, o imaginal entra com uma ideia obsessiva-compulsiva, cada um cria o próprio enredo conflituoso.

F: Como dizia o poeta, “Cada qual no seu canto e em cada canto um dor, pra ver a banda passar, cantando canto de amor... O lance é que o imaginal só se aquieta, basicamente quando as sensações de inquietude dão uma trégua. Mas, para o nosso desencanto, logo a trégua acaba.

O: E retoma o looping com seu enredo compulsivo-obsessivo.

F: Isso.

O: Olhando a trajetória até aqui, percebo facilmente que a estrutura sempre fez de tudo, sempre abriu mão de tudo, apenas para manter a si mesma. Foi sempre pela identificação com o impulso emotivo reativo escapista que ela impediu a continuidade da inquietude que, quem sabe, ao alcançar determinado ponto de manifestação, pudesse fazer a estrutura colapsar.

F: Medo. Sim, medo de sentir a inquietude até o seu talo. Sempre evitando o sentir da inquietude.

O: Sempre um mecanismo, sempre uma arma para evitar o sentir da inquietude em sua plenitude.

F: Aqui, bem isso mesmo!

O: isso me fez lembrar da cena do filme “Revolver”, onde, dentro do elevador, no auge do enredo da estrutura egóica, o personagem deixa cair a arma ao chão e, logo a seguir, ocorre a libertação do medo.

F: A arma é o pensamento (medo).

O: A arma é tudo aquilo que o pensamento sugere como opção para deixar de sentir a inquietude.

F: Isso. Só que no filme “Revolver”, finda o fluxo da mente, mas aqui, parece que não finda.

O: Parece que há algo em comum que é a incapacidade de ficar com a inquietude, pois chega num determinado ponto, sempre tentamos escapar dela, mesmo que sendo por meio de uma volta pelas calçadas da rua, ou mesmo por meio de um copo d’água sem ao menos se ter sede. Pode ver aí, a mente sempre justifica o fazer algo para não ter que observar a inquietude até sua exata natureza.

F:  A mente foge por meio do próprio ato de pensar sobre a inquietude. Não tem como. Curtos segundos de ficar com a inquietude, depois, ela reage por meio do pensamento.

O: Lembra que o personagem do filme "Revolver" sempre tentava escapar das situações que lhe causavam inquietude, como, por exemplo, o uso do elevador? Esse é um ponto interessante, pois vejo que o diretor quis orientar nossa visão para esse mecanismo de fuga da inquietude.

F: Sim. Mas pode ver que não ficamos porque há um mecanismo de fuga. Mesmo que você retorne, a estrutura foge, retorna, foge, não tem como. Ficamos com a inquietude, apenas por curtos momentos.

O: Por que não ficamos? Qual é a sensação que nos faz desistir de ficar com o que está se manifestando no sensorial inquieto? O que é que diz que não vamos aguentar, senão o próprio pensamento, a própria estrutura? Percebe que é ela mesma tentando evitar seu colapso? Ou quem sabe, de impedir seu funcionamento em cima das velhas bases adquiridas?

F: Sim, óbvio que é isso, mas não é óbvio para quem não esteja nisso. Mas é isso que falei cedo, no primeiro diálogo, a mesma pergunta que você lança, eu fiz pela manhã, a mesma pergunta.

O: Olhando para a trajetória desta estrutura, percebo que ela, ao se sentir inquieta por causa da percepção de seu comportamento adulterado e adulterante, sempre forçou o distanciamento das situações em que ela se adulterou assim como aos demais, só para poder reiniciar seu curso em novos palcos, como novos coadjuvantes. Sempre foi isso, e, por meio desse mecanismo de funcionamento, é que ela se cristalizou. Ela nunca permitiu que a inquietude causada pela tomada de consciência quanto às suas adulterações, chegasse a tal ponto de fazer com que ela colapsasse em seu atual mecanismo de ação e, quem sabe, descobrisse uma nova maneira de percepção, recepção e interação.

Ao sair de tais situações, enquanto a dor produzida pela inquietude ainda estava fresca, ela até que se mantinha no propósito de seguir de modo diferente, mas, passada a dor, logo era tomada novamente pela euforia que a lançava sempre no mesmo padrão de ação. Talvez, por isso a cultura criou a expressão: "de boas intenções, o inferno está cheio"; ou então a expressão: "Eu faço o mal que não quero fazer e, o bem que quero fazer, eu não faço." Enquanto nessa estrutura, esse bem parece nunca ser possível, uma vez que tal estrutura funciona com base no cálculo autocentrado, no auto-interesse manipulador.

Esse auto-interesse nunca nos deixa ver as coisas, as pessoas e as circunstâncias como realmente são; ao contrário disso, faz com as vejamos de acordo com aquilo que é ou não de nosso interesse momentâneo. Não é difícil observar que, uma vez que o interesse mude, descartamos as coisas, as pessoas e as circunstâncias sem o mínimo remorso ou preocupação, não levando nem alguns dias para esquecer que elas existiram. Em algumas situações, até encenamos uma tristeza, um remorso ou preocupação, mas tudo como mais um cálculo com base na preservação da própria imagem. Quando damos as costas, lá está a velha estrutura, com seus cálculos para as novas formas de satisfação de seus instintos naturais adulterados, os quais, uma vez realizados, se tornarão novos focos de inquietude. Essa tem sido a base do nosso viver.

Não ficamos com a inquietude, porque a própria mente inquieta justifica o não ficar com a inquietude, dizendo que isso não é viver, que a vida está passando sem ser vivida, que se o indivíduo ficar com a inquietude, acabará por enlouquecer ou coisa do tipo.

F: Não ficamos, ponto. Há um mecanismo – os próprios pensamentos são reações à inquietude, os próprios pensamentos são uma forma de fuga. Porque há sempre a sensação ou ideia de que tem que ser feito algo para alterar ou fugir dessa sensação ou dessas sensações. Veja, funciona como um mecanismo. Mas será mesmo assim sempre ou isso pode modificar e quebrar isso como é apontado no filme “Revolver”?

O: E a mente inquieta justifica esse fazer algo para sair da inquietude, de modo quase sempre muito sutil, quase mesmo que imperceptível. A observação nos faz ver que, mesmo conversar ou escrever sobre a inquietude, é também uma forma de fuga da inquietude que é impulsionada pela sagacidade da estrutura.

F: Mas é claro que é... É ela ainda... somos pura inquietude... Essa é a grande sacada, perceber que está condicionada, que não há o que fazer; isso é tão lógico, tão claro. A sensação está ok então como está, mesmo desconfortável? Parece aquele dilema dos dois soldados voltando da guerra, onde um traumatiza enquanto que o outro volta como herói de guerra. Por que um não aguentou e o outro sim? O próprio pensamento é mecanismo de fuga, entretanto, agora ele está sendo visto e talvez algo surja daí.

O: Quando o indivíduo chega nessa percepção, a inquietude se torna quase que enlouquecedora, pois ele não tem mais como mentir para si mesmo, pois agora, é percebida de imediato a natureza exata que dá vida as suas ações (ou reações?). Aqui, o indivíduo pode ir aonde for, que já sabe de antemão que foi até lá em vão. E aí sim o viver se tornar terrivelmente enfadonho e sem real sentido. Durma bem com essa percepção, se é que é possível.

F: Mentimos a vida toda, sempre dizendo que estamos bem, quando, de fato, estávamos inquietos. Tipo: Tudo bem, João? Tudo, e você? Tudo! Então, tá! Tudo bem inquieto, foram 40 anos mentindo.

O: Penso que precisa surgir uma percepção que transcenda todo cálculo, todo interesse, toda forma de mania ou dependência.

F: Iniciou o looping novamente... O que separa o ficar com a inquietude da reação? A sensação está boa como está? Você sente que tem que “fazer” algo para alterar ou fugir dessa sensação/ou dessas sensações?... Veja, é assim que a estrutura joga sutilmente, é assim que ela se alimenta em forma de looping.

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