07/05/2021

A observação e a "nuvem do não-saber"

O: Não conseguimos abraçar a liberdade porque estamos apegados em circunstâncias que criamos num período de profunda inconsciência e desequilíbrio. Isso aliado ao fato de não sabermos o real sentido, a direção do viver correto. Com isso, permanecemos desconhecendo qual é o nosso lugar neste mundo. Não amamos as circunstâncias em que nos encontramos, apesar das mesmas serem de algum modo convenientes. Carecemos da capacidade de saber o que é amar essas circunstâncias criadas, assim como da libertária e integrativa lucidez. Desse modo, permanecemos numa dualidade oscilante entre querer ou não perpetuar tais circunstâncias em que nos encontramos.

F: Caímos naquela: “Aqui na terra tão jogando futebol, tem muito samba, muito show e rock Roll, mas o que quero lhe dizer: é que a coisa aqui tá preta”... Ou seja: Não tem saída. Rotina enfadonha, imitativa, compulsiva, ritualística, escancarada pela pandemia.

O: Parece-me que não há saída enquanto não desperta em nós, a percepção da libertária ação correta, pois não sabemos o que queremos de fato.

F: Hoje dá para entender o personagem Cypher do filme “Matrix”.

O: Agir por reação não produz ação correta. Carecemos de amorosa e integrativa lucidez.

F: Não podemos continuar agindo por meio da confusão, não há lucidez, sou confuso, contraditório, com uma consciência totalmente dúbia; impossível de ser organizado pelo esforço, visto que o pensamento e as sensações são mutantes. Somos confusos, consciência totalmente confusa, contraditória, dualista. Ótimo exemplo observar as crianças, somos iguais a elas, apenas mais organizados, ou melhor, só mais condicionados. Em vista dos nossos condicionamentos, não tem como ter ação que seja correta, não dá! Hoje eu entendo perfeitamente o personagem Cypher: Medo, Ansiedade, Inquietude, Agitação, etc., etc., etc. Por meio dessa consciência confusa, a ação correta é Impossível. Nem sabemos e nem temos condições de saber o que nos falta. Nem temos condição de saber o que precisa ser feito ou o que nos falta, pois esse é outro golpe da estrutura; é ela mesmo dizendo o que falta, o que precisa ser feito. Mas ela está totalmente obscura, envolta em confusão, em contradições, dúbia, dual. Nesse estado de consciência, não tem como, pois é só a confusão dizendo o que falta, o que precisa ser feito. É mais um truque da estrutura. Igual dois loucos no hospício. Quanto mais agir de acordo com a estrutura, mais confusão, e segue o baile. Tudo truque do observador.

O: Sim, ele ainda vê de modo fragmentado.

F: Tudo truque do observador que diz para si mesmo: Eu sou lúcido, estou vendo toda confusão... Esse pensamento não sou eu, esse sou eu. Agora, esse aqui, não sou eu. Eu sou esse que está vendo a confusão, que está vendo o pensamento confuso. Eu sou esse aqui que está vendo tudo isso; não estou confuso. Muito cômico; só mais um truque da estrutura. Xeque-mate. Parece ter dois, mas na real, não tem. Xeque, confusão, tudo conteúdo do imaginal, tudo uma coisa só. Xeque-mate. Você sabe que é o veiaco observador de guerra... “O oponente é inteligente!”, dizia o personagem o filme “Revolver”.

D: O observador "é" a coisa observada.

F: O que eu acho mais louco, é que ficou só você e a Deca, não tem mais ninguém que está nisso. Não tem ninguém não. Só ficou você e a Deca, um ou outro manda aí uma mensagem que de vez em quando você compartilha, do tipo: "Ah! Estou acompanhando!", dá um ok, tal, mas... percepção ninguém troca. Percebo que só nós estamos trocando as percepções. Não estou me gabando ou gabando vocês. Nada disso! Estou falando que ninguém está nisso. Também não estou afirmando que isso seja importante, mas pode ser que se tivesse mais gente percebendo a fundo tudo isso, trocando essas percepções, quem sabe alguma percepção diferenciada surgiria, quem sabe! Mas a estrutura é a mesma para todos!

D: Quando você falou do personagem Cypher, ocorreu-me que somos os tripulantes da nave Nabucodonosor que optaram pela simplicidade voluntária, pelo modo de vida que escolhemos diante do processo. Nós escolhemos estar ali, só que o que é o Cypher? Ele é esse conteúdo do imaginal que fica o tempo todo dizendo que não quer mais ficar dentro da mesma situação de sempre, comendo essa gororoba, ficar vestido com esses trapos, preso nesta nave. Eu quero ir para a Matrix e comer carne. Eu quero a "mulher de vermelho". Então você vê que o conteúdo do imaginal é isso: o tempo todo ele está lançando impulsos para a busca do falso, está lançando o que ele sabe lançar: imaginações, o que não é concreto, o que não é confiável.

O: Exatamente, ele sempre cria uma "mulher de vermelho", que é um arquétipo de um imaginado possível relacionamento perfeito, ou um emprego perfeito, ele cria tudo isso!

D: Ele imagina uma família perfeita! Tudo perfeito só no imaginal!

O: Ele está sempre imaginando um possível "final feliz!" Estamos presos no imaginal! O que está claro para mim é que carecemos da lucidez que possa produzir uma vida com real significado e sentido de sentir... Uma lucidez que apresente um modo de receber e sentir a vida de modo completamente diferente e, em resultado dessa diferente percepção do viver, a capacidade de produzir uma ação de qualidade completamente diferente em direção a todos aqueles que tocamos, tudo que tocamos. Tudo que tocamos está sempre sendo adulterado por uma forma de cálculo autocentrado, sempre por uma forma de auto-interesse. Então, carecemos de uma lucidez que produza uma ação que é integrativa, amorosa, mas sem a velhaca espera de um possível retorno num momento de necessidade. Enquanto nessa estrutura pela qual funcionamos, sempre temos um auto-interesse por detrás de nossas escolhas e reações.

F: Exatamente, Deca. Quando no primeiro livro que o Out me mandou, que foi o livro "A eliminação do tempo psicológico", e depois ele me mandou uma série de sete vídeos do Krishnamurti com um psicólogo e um cientista e que, no começo, foi terrível assistir aquilo lá. Beleza! Onde quero chegar? Teve uma parte nos vídeos em que o psicólogo pergunta para o Krishnamurti: Qual que é a minha relação com o pensamento? E o Krishnamurti balança a cabeça e responde: "Você é pensamento!" Aí o David Bohn pergunta: E porque o pensamento não para? Onde eu quero chegar com isso: Não dá para comparar com a experiência do cidadão. Ele mesmo afirma numa outra entrevista, que ele teve a "Graça"... que pela ação da "Graça", a velha estrutura ali derreteu, houve uma mutação no funcionamento do seu cérebro. Não adianta se esforçar para modificar a estrutura... O mais que dá, é você se sentir um ser ridículo, limitado, que só usa 10% da sua cabeça animal. Não adianta se esforçar. Não adianta!

Deca, hoje estamos quase como o Cypher. Mas a questão é que não tem saída, a ideia de se entregar para a Matrix é uma grande mentira. É só mais uma do imaginal dizendo que há saída por meio da identificação com a Matrix. Penso que se agora mesmo nos sentíssemos bem, nada faltaria. Mas, de fato, nem isso sei se é real, portanto, deleta, é só mais uma do meu imaginal.

D: Sim! Não dá pra confiar no conteúdo do imaginal condicionado!

F: Você tem razão Deca, o observador é a coisa observada! Eu vejo aqui, que nem temos condições de saber, eu não tenho, nenhuma! Ainda é lucro estarmos vendo, ou seja, a própria estrutura se vendo como de fato é... ainda é lucro! Eu concordo que tudo isso ainda é o imaginal, lógico! Não sabemos o que é que realmente nos falta. Não dá para saber se falta "sal ou açúcar", não dá porque somos confusos! Somos a estrutura! Não dá para cair no truque da própria estrutura de que somos algo diferente do que é observado. Não dá! Pura confusão é o que somos, pura angústia, pura inquietude, pura confusão... tudo isso!

O: Essa ideia de que não somos a coisa observada, é um truque que a mente aplica, quando ela se depara com textos, por exemplo, do Advaita Vedanta, que vem com aquelas ideias de que você não é nada disso, que você é o "Puro Ser", o "Eu Sou", que você é a "Natureza Pura", esse monte de coisa. Então, é mais um impulso emotivo reativo escapista, criado pela própria mente confusa, para negar aquilo que ela está observando em si mesma, e criar uma separação "observador e coisa observada". Esse é outro truque da estrutura pela qual funcionamos, e todos que chegam até aqui, acabam também caindo nesse truque por algum tempo.

F: É o imaginal pede pela "Lucidez Perfeita", a qual ele imagina existir, uma lucidez do jeito que ele quer. O imaginal imagina o amor perfeito, e que nos falta isso que ele imagina ser o amor... Ontem tocamos num ponto muito interessante: vimos juntos que não sabemos, de fato, o que nos falta para solucionar de vez a nossa inquietude, a nossa ausência de real sentido em nosso viver. Nem sequer isso nós sabemos com certeza.

O: Por outro lado, o imaginal também imagina que essa "Lucidez Perfeita" não existe, que esse "Amor Perfeito" não existe. Isso é natural, visto que o imaginal é sempre dual: ele lança uma imaginação e logo depois lança outra imaginação que contradiz a imaginação anterior. Ele sempre cria a contradição que sustenta o estado de inquietude e confusão. Então, tanto a imaginação de que existe uma lucidez amorosa e integrativa ou a imaginação de que não existe tal qualidade de libertária lucidez, ambas imaginações partem da mesma estrutura do imaginal sensorial condicionado, que se percebe confusa e impotente de sair de seu estado de confusão e ausência de real sentido.

F: Esse é um ponto muito interessante que alcançamos no processo de descondicionamento! Esse ponto de "não saber" o que nos falta. Estou sendo muito sincero: eu não tenho condições de saber o que me falta. Só sabemos o que vivemos e sentimos, mas não o que, de fato, nos falta. Não sabemos para onde apontar a nossa antena. Quando se chega aqui, ninguém sabe! Ontem o Out falou algo muito interessante: Não teve mente mais esclarecida e mais afiada do que a do K, não teve. Nós lemos e vimos tudo isso, mas não estamos lendo mais, não tem com. Mas não temos condições de ir além disso, que me parece ser algo como um "surto assistido".

O: Nesse processo de descondicionamento, se você for muito sério, inevitavelmente você chegará nesse ponto da "nuvem do não-saber"... de você não saber, como você bem disse, para onde apontar a sua antena. Você acaba caindo num estado de impotência, numa rua sem saída.

F: Eu não estou contestando, simplesmente estou trocando francamente aquilo que estou percebendo. O que é percebido aqui é que se agora eu estivesse me sentindo bem, me sentindo em paz, não me faltaria nada. Mas eu não sei, eu não tenho condições de saber, sinceramente, minha mente, minha consciência é confusa. Aqui é confuso!

O: Por isso afirmamos sobre a necessidade da ocorrência de um despertar de um estado de lucidez, de um estado de percepção da realidade, além desse estado de percepção que foi alcançado por nós através do processo de descondicionamento. Isso precisa despertar porque não é algo possível pelo exercício da vontade e do esforço próprio. Sabemos que não vem porque já tentamos isso e já vimos a limitação do esforço, do acúmulo de conhecimento, da análise, já constatamos isso. Então, chegamos nesse beco da impotência, onde está o "não saber".

F: O momento do processo é muito louco, parece aquele momento em que você está assistindo um jogo de futebol e torcendo para seu time, onde, independente de você torcer, o cara lá não vai fazer o gol, o time não vai ganhar, não vai acontecer o que você está esperando... independente do que é dito pelo narrador ou pelo comentarista, não vai ser assim! O momento é o de assistir o jogo de futebol, calado, em silêncio... Parece que o momento do processo é algo parecido com assistir o jogo em silêncio, sem comemorar, sem comentar nada, sem fazer nada... Não tem mais o que fazer, pois não vai acontecer do jeito que imaginamos, do jeito que a gente torce, do jeito que a gente quer que aconteça, do jeito condicionado que imaginamos.

O: Mas nem isso podemos afirmar, de que a coisa não acontecerá do jeito que a gente torce, do jeito que a gente imagina, do jeito que a gente quer que aconteça. Penso que aí também é mais um dos truques do imaginal, imaginando que a coisa pode não acontecer do jeito que a gente torce, do jeito que a gente quer que aconteça. Agora, de fato, o que me parece é que não tem o que fazer, que a única coisa que no momento podemos fazer é ficar assistindo esse jogo dual que ocorre tanto nos pensamentos como nas sensações, porque isso é algo factual: você pensa uma coisa num instante e no instante seguinte você está pensando de modo diferente ao anterior; você sente algo neste instante e daqui alguns segundos você está sentindo algo completamente diferente que sentia no momento anterior. Então, permanece como um fato, essa dualidade, a qual me parece algo semelhante a um estado de esquizofrenia, em que não dá para confiar nessa situação dual. Por isso que afirmo, penso eu, dá necessidade de termos uma explosão, um "eureka", um "Ah! É isso!", uma inusitada percepção que nos apresente uma ação libertária, uma ação que nos liberte desse jogo dual do imaginal que só produz confusão e adulteração da percepção da realidade.

Se você observar bem, durante a vida toda, essa "nuvem do não-saber" sempre esteve presente. Isso porque sempre estivemos funcionando dentro dessa limitada estrutura condicionada, a qual carece de lucidez e de autonomia psíquica, que não tem clareza da ação correta. E, pelo fato de estarmos sempre nessa nuvem do não-saber, a qual sempre produziu confusão, a ponto de não sabermos como solucionar os desafios que a vida vai nos apresentando em seu cotidiano, sempre estávamos correndo atrás de alguma autoridade, na qual colocávamos nossa esperança dela nos apontar qual é a ação correta, qual o caminho certo a ser seguido, o que devemos fazer, não é mesmo? De nos apresentar uma receitinha de como viver feliz. O último que nós utilizamos foi o Krishnamurti, mas agora, não dá mais. Não dá mais para ficarmos na espera de doações psicológicas de terceiros; precisa ocorrer algo em nós, uma mutação psíquica, uma mutação em nossa capacidade de perceber, sentir e interagir com a realidade que nos cerca; uma mutação que nos proporcione uma qualidade de autonomia psíquica, de clareza, de percepção da verdade que liberta pela ação correta.

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