05/05/2021

A contínua inquietude da estrutura condicionada

 

O: Você observa a inquietude e as imagens que ela lança de que, a qualquer momento, você surtará, perderá o contato com a realidade, de que acabará fazendo uma loucura... tudo isso é visto e desconstruído no momento da própria percepção. No entanto, o imaginal percebeu-se percebido e, pelo que tenho observado, ele acelera a produção de projeções para tentar causar a neurótica identificação emotiva reativa, pela qual ele se retroalimenta. Tudo isso está sendo percebido cada vez mais instantaneamente, mas permanece um desgaste que é próprio do fluxo inquieto, pois, onde há fluxo, há emprego e desperdício de energia. É percebido que essa estrutura foi montada em cima do medo, da vergonha, da dependência, do cálculo autocentrado, da comparação, da imitação e de imaturas formas de crenças organizadas. Ela funciona por essa base e, enquanto essa base estiver aí, não temos como saber o que é liberdade, criatividade, amor, compaixão, integração, felicidade, bem-aventurança, paz.

No entanto, esbarramos no grande xeque-mate: a estrutura, por si mesma, não tem como desestrutura-se em suas bases, por ação do esforço próprio; ela carece desse poder. Então, ela mesma lança a ideia de buscar por um Poder Superior no externo, mas isso é ela mesma em ação, mantendo novos loopings de ilusão.

Por ação dessa estrutura, sempre nos sentimos inadequados, fora de nossa ambientação, sem saber qual é o nosso real lugar e papel neste mundo. Por mais avançada que seja a nossa percepção, permanece esse sentimento de inadequação, de não saber qual é o nosso real lugar neste mundo. Isso se intensifica ainda mais, quando vemos a imaturidade da maioria das coisas que sustentam o status quo. Já existe uma certa qualidade de lucidez que nos apresentou essa imaturidade do que está na estrutura social. Podemos dizer que vemos em partes, no entanto, ainda não temos a percepção integrada; carecemos da lucidez libertária e integrativa, e ela, a meu ver, não surge pela vontade, pelo exercício do esforço e do cálculo.

F: Não há nada que possamos fazer. Nada detém o movimento da mente, dos pensamentos, das emoções, das sensações. Nada.

O: Sim dentro da estrutura, não há!

F: Não tem como saber nada... Tudo só aparece, cria ilusão. Podemos usar qualquer ilusão para explicar o que é sentido... Todas servem, mas nenhuma serve, visto que o que é sentido, também permanece mutando. Por isso essa sensação de looping. A observação se tornou aguçada, a ponto de pegar cada pensamento e sensação, de ver o looping fractal, de se ver presa num looping infinito. Percebe?

O: Claramente.

F: Qualquer sensação que surja, o pensamento pode tentar explicar, no entanto, e daí? A explicação tem o poder de silenciar esse mecanismo? A estrutura criou os psicólogos, papas, psiquiatras, grupos anônimos, regressões, análise das memórias e dos sonhos... mas e daí? Se a sensação está aí, não importa... A explicação da sensação, não silencia a sensação, não resolve.

O: Sim, explicar qual é o vírus da Covid não liberta da Convid.

F: Mesmo a não explicação, também não resolve, pois, a manifestação de sensação inquietante permanece; está lá e pronto.

O: Chega-se num intransponível xeque-mate: se ficar a inquietude pega, se fugir a inquietude come.

F: Exato. Estamos no olho do furacão.

O: Sim, não tem para onde correr. Nem mesmo falar sobre isso resolve.

F: Questão não acho nem que seja essa. Nossa intenção de falar já não é mais o desabafo.

O: Sim, nada parecido com aquele vício das salas de anônimos ou dos divãs psicológicos.

F: Sim.

O: Chega-se num sentimento de total impotência de transcendência do mal-estar da inquietude.

F: Isso. Esse é o ponto. Quem sabe ela cai ou algo surja aí.

O: Para quem não viveu esse longo processo de descondicionamento, o qual amadurece a qualidade da observação, isso pode soar como masoquismo. Isso porque a estrutura acredita na meritocracia do condicionado cálculo autocentrado.

F: Com certeza irá. No próprio filme do Buda, quando ele permanece sentado embaixo da árvore, ele está ali vivendo o auge da inquietude. Só serve de simbolismo, mas há outros.

O: Veja, até aqui, temos tentado de tudo para solucionar nossa inadequação, nossa ausência de sentido, nosso desconhecimento de verdadeira intimidade, por meio do esforço, do cálculo autocentrado e de tentar aplicar infinitos tipos de doações psicológicas de terceiros, no entanto, nada disso nos libertou de nosso inquieto estado de ser.

Veja, chegamos a acreditar que vivemos o que chamam de fundo de poço, no entanto, isso nunca foi o fundo do poço real. E tem mais, isso que acreditamos ter vivido como sendo um fundo de poço, nunca foi vivido de modo consciente e de boa vontade; sempre foi algo forçoso e com imenso esforço de fuga. Sempre estávamos correndo atrás de doações psicológicas de terceiros para tentar silenciar as doações não solicitadas da própria estrutura psicológica pela qual funcionamos. Isso deu a ilusão de liberdade.... mas por breve tempo. Isso deu respeitabilidade localizada, mas nada de liberdade real.

F: Eu não diria que estamos nisso de boa vontade, mas que chegamos nisso, vimos e sentimos que não tem para onde correr, pois o correr já é a própria fuga, não importando para onde.

O: A fuga é um padrão de comportamento da estrutura. Fugimos pra benzedeira, terço, promessa, yoga, meditação, prática de passos espirituais, crenças e mais crenças, abstinência corporal e sensorial, abstinência de pessoas e lugares... onde chegamos com isso? Findamos com o estado inquieto de ser?

F: Eu diria que agora ficamos com o que é, com o que ocorre nisso que somos. Para chegar nessa capacidade de ficar com isso, a remoção do mimimi foi fundamental, da sofrência verbalizada em forma de chororô. A própria tentativa de fugir, só gera mais inquietude, que é a reação em si.

O: Muito claro isso!

F: Quando se vê inquieta, a estrutura imagina uma fuga que causará uma sensação diferente da inquietude, mas esse é o grande truque, pois a inquietude não finda.

O: Sim, só se transveste em outra forma de inquietude, migra para outras ambientações e situações.

F: Inquietude me parece ser a última raiz... Aqui, o indivíduo vive o xeque-mate.

O: Pela observação, desmontamos tudo que é tido por essencial aí no mundo social condicionado, inclusive, tudo aquilo que se tem por essencial no que é chamado de autoconhecimento e espiritualidade. Tentamos tudo isso, com muito afinco, mas nada funcionou... Eles diziam: "Volta que funciona".... mas não funcionou...

F: Pela observação, percebemos também a limitação das programações anônimas, as quais foram criadas por mentes tão limitadas como as nossas, mas, naquele momento, não tínhamos como ver isso.

O: Toda doação psicológica de terceiros só tem o poder de nos fazer migrar de uma dependência para outra; não liberta. Mesmo o que vem da própria observação, também não liberta.

F: Nada liberta da inquietude; ainda não encontrei, nem mesmo a observação tem esse poder. Por isso dissemos que questionamos os ditos mestres e seus métodos.

O: Aqui, tudo que vem de fora, por mais belo e poético que seja, já não interessa mais, pois já foi vivido antes e não libertou. Nem mesmo o que temos aplicado aqui, que é a observação, pois foi visto também a sua limitação de transcendência.

F: Claro que não.

O: Para quem não está preparado para estas verdades, isso pode gerar o desespero.

F: Exato. De tudo que vi, isso é o que mais se aproxima daquele lance dos 10 grilhões (fetters) do budismo. Li isso há muito tempo, há uns anos atrás e o penúltimo estágio era a inquietude e que a porra não vai.

O: Desconheço isso, pois nunca tive saco para o budismo.

F: Nem eu, mas já li, está lá escrito sobre a inquietude. No budismo, a inquietude também está lá, na raiz de tudo. Mas não é por isso que chegamos nela... Sentimos isso, dane-se a explanação.

O: Sabe, parece-me muito lógico que temos de permitir que ocorra um assistido colapso da estrutura psíquica pela qual funcionamos, visto que, por meio dela, não conseguimos solucionar a inquietude do nosso viver, nossa ausência de conexão real. Parece-me que a bola da vez é assistir a estrutura se retorcendo.

F: Sim, muito lógico isso!

O: Ver e sentir suas dependências, sua confusão, suas somatizações, ver tudo isso, mas sem querer fazer algo para se libertar de tudo isso, apenas ver e sentir, deixar ser, ver até onde isso pode chegar, tudo isso de modo muito maduro, muito consciente, muito passivo, não reativo.

F: Parece que inquietude é bola da vez.

O: Sempre foi a bola da vez, só que estávamos ocupados com outras bolas. Não havia maturidade para ver e ficar com isso sem aceitar por condicionantes doações psicológicas de terceiros.

F: Não havia!

O: Se não estivéssemos nos narcotizando com algo, sempre estávamos em busca de alguém que nos apontasse a ação correta pela qual pudéssemos saber o que é liberdade, felicidade e integridade. Nossa confusão era tão grande, que não conseguíamos perceber a confusão na própria vida daqueles que nos prometiam por ajuda. Não conseguíamos ver como eles mesmos, não sabiam o que era a verdadeira intimidade, da qual se protegiam através do manto da respeitabilidade. A própria liderança e respeitabilidade, foi a droga para qual eles migraram. Mas tudo isso era imperceptível aos nossos olhos. Não conseguíamos ver o jogo de migração de dependências por meio da dependência padrinho-afilhado, mestre-discípulo, analista-analisado... Mas tudo isso nos foi revelado e, nessa revelação, a raiz de tudo está se revelando cada vez mais: a contínua inquietude da estrutura condicionada.

Pelo que observei até aqui, se não ocorrer um colapso total da estrutura — não se trata mais de colapsos pontualizados, setorizados —, se não ocorrer um colapso integral da estrutura, não temos como saber se é possível ou não uma existência num estado de ser livre de qualquer tipo de condicionamento psíquico. Por breves experiências passadas, sabemos que esse estado é uma realidade.

Vou almoçar, no falamos mais tarde.

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