O: Você observa a inquietude e as
imagens que ela lança de que, a qualquer momento, você surtará, perderá o contato
com a realidade, de que acabará fazendo uma loucura... tudo isso é visto e
desconstruído no momento da própria percepção. No entanto, o imaginal
percebeu-se percebido e, pelo que tenho observado, ele acelera a produção de projeções
para tentar causar a neurótica identificação emotiva reativa, pela qual ele se
retroalimenta. Tudo isso está sendo percebido cada vez mais instantaneamente,
mas permanece um desgaste que é próprio do fluxo inquieto, pois, onde há fluxo,
há emprego e desperdício de energia. É percebido que essa estrutura foi montada
em cima do medo, da vergonha, da dependência, do cálculo autocentrado, da
comparação, da imitação e de imaturas formas de crenças organizadas. Ela
funciona por essa base e, enquanto essa base estiver aí, não temos como saber o
que é liberdade, criatividade, amor, compaixão, integração, felicidade,
bem-aventurança, paz.
No entanto, esbarramos no grande
xeque-mate: a estrutura, por si mesma, não tem como desestrutura-se em suas
bases, por ação do esforço próprio; ela carece desse poder. Então, ela mesma
lança a ideia de buscar por um Poder Superior no externo, mas isso é ela mesma
em ação, mantendo novos loopings de ilusão.
Por ação dessa estrutura, sempre
nos sentimos inadequados, fora de nossa ambientação, sem saber qual é o nosso
real lugar e papel neste mundo. Por mais avançada que seja a nossa percepção,
permanece esse sentimento de inadequação, de não saber qual é o nosso real
lugar neste mundo. Isso se intensifica ainda mais, quando vemos a imaturidade
da maioria das coisas que sustentam o status quo. Já existe uma certa qualidade
de lucidez que nos apresentou essa imaturidade do que está na estrutura social.
Podemos dizer que vemos em partes, no entanto, ainda não temos a percepção
integrada; carecemos da lucidez libertária e integrativa, e ela, a meu ver, não
surge pela vontade, pelo exercício do esforço e do cálculo.
F: Não há nada que possamos fazer.
Nada detém o movimento da mente, dos pensamentos, das emoções, das sensações.
Nada.
O: Sim dentro da estrutura, não
há!
F: Não tem como saber nada... Tudo
só aparece, cria ilusão. Podemos usar qualquer ilusão para explicar o que é
sentido... Todas servem, mas nenhuma serve, visto que o que é sentido, também permanece
mutando. Por isso essa sensação de looping. A observação se tornou aguçada, a
ponto de pegar cada pensamento e sensação, de ver o looping fractal, de se ver
presa num looping infinito. Percebe?
O: Claramente.
F: Qualquer sensação que surja, o
pensamento pode tentar explicar, no entanto, e daí? A explicação tem o poder de
silenciar esse mecanismo? A estrutura criou os psicólogos, papas, psiquiatras,
grupos anônimos, regressões, análise das memórias e dos sonhos... mas e daí? Se
a sensação está aí, não importa... A explicação da sensação, não silencia a
sensação, não resolve.
O: Sim, explicar qual é o vírus
da Covid não liberta da Convid.
F: Mesmo a não explicação, também
não resolve, pois, a manifestação de sensação inquietante permanece; está lá e pronto.
O: Chega-se num intransponível
xeque-mate: se ficar a inquietude pega, se fugir a inquietude come.
F: Exato. Estamos no olho do
furacão.
O: Sim, não tem para onde correr.
Nem mesmo falar sobre isso resolve.
F: Questão não acho nem que seja
essa. Nossa intenção de falar já não é mais o desabafo.
O: Sim, nada parecido com aquele
vício das salas de anônimos ou dos divãs psicológicos.
F: Sim.
O: Chega-se num sentimento de
total impotência de transcendência do mal-estar da inquietude.
F: Isso. Esse é o ponto. Quem
sabe ela cai ou algo surja aí.
O: Para quem não viveu esse longo
processo de descondicionamento, o qual amadurece a qualidade da observação,
isso pode soar como masoquismo. Isso porque a estrutura acredita na
meritocracia do condicionado cálculo autocentrado.
F: Com certeza irá. No próprio
filme do Buda, quando ele permanece sentado embaixo da árvore, ele está ali
vivendo o auge da inquietude. Só serve de simbolismo, mas há outros.
O: Veja, até aqui, temos tentado
de tudo para solucionar nossa inadequação, nossa ausência de sentido, nosso
desconhecimento de verdadeira intimidade, por meio do esforço, do cálculo
autocentrado e de tentar aplicar infinitos tipos de doações psicológicas de
terceiros, no entanto, nada disso nos libertou de nosso inquieto estado de ser.
Veja, chegamos a acreditar que
vivemos o que chamam de fundo de poço, no entanto, isso nunca foi o fundo do
poço real. E tem mais, isso que acreditamos ter vivido como sendo um fundo de
poço, nunca foi vivido de modo consciente e de boa vontade; sempre foi algo
forçoso e com imenso esforço de fuga. Sempre estávamos correndo atrás de
doações psicológicas de terceiros para tentar silenciar as doações não
solicitadas da própria estrutura psicológica pela qual funcionamos. Isso deu a
ilusão de liberdade.... mas por breve tempo. Isso deu respeitabilidade
localizada, mas nada de liberdade real.
F: Eu não diria que estamos nisso
de boa vontade, mas que chegamos nisso, vimos e sentimos que não tem para onde
correr, pois o correr já é a própria fuga, não importando para onde.
O: A fuga é um padrão de
comportamento da estrutura. Fugimos pra benzedeira, terço, promessa, yoga,
meditação, prática de passos espirituais, crenças e mais crenças, abstinência
corporal e sensorial, abstinência de pessoas e lugares... onde chegamos com
isso? Findamos com o estado inquieto de ser?
F: Eu diria que agora ficamos com
o que é, com o que ocorre nisso que somos. Para chegar nessa capacidade de ficar
com isso, a remoção do mimimi foi fundamental, da sofrência verbalizada em
forma de chororô. A própria tentativa de fugir, só gera mais inquietude, que é
a reação em si.
O: Muito claro isso!
F: Quando se vê inquieta, a
estrutura imagina uma fuga que causará uma sensação diferente da inquietude,
mas esse é o grande truque, pois a inquietude não finda.
O: Sim, só se transveste em outra
forma de inquietude, migra para outras ambientações e situações.
F: Inquietude me parece ser a última
raiz... Aqui, o indivíduo vive o xeque-mate.
O: Pela observação, desmontamos
tudo que é tido por essencial aí no mundo social condicionado, inclusive, tudo
aquilo que se tem por essencial no que é chamado de autoconhecimento e
espiritualidade. Tentamos tudo isso, com muito afinco, mas nada funcionou...
Eles diziam: "Volta que funciona".... mas não funcionou...
F: Pela observação, percebemos também
a limitação das programações anônimas, as quais foram criadas por mentes tão limitadas
como as nossas, mas, naquele momento, não tínhamos como ver isso.
O: Toda doação psicológica de
terceiros só tem o poder de nos fazer migrar de uma dependência para outra; não
liberta. Mesmo o que vem da própria observação, também não liberta.
F: Nada liberta da inquietude; ainda
não encontrei, nem mesmo a observação tem esse poder. Por isso dissemos que
questionamos os ditos mestres e seus métodos.
O: Aqui, tudo que vem de fora,
por mais belo e poético que seja, já não interessa mais, pois já foi vivido
antes e não libertou. Nem mesmo o que temos aplicado aqui, que é a observação,
pois foi visto também a sua limitação de transcendência.
F: Claro que não.
O: Para quem não está preparado
para estas verdades, isso pode gerar o desespero.
F: Exato. De tudo que vi, isso é
o que mais se aproxima daquele lance dos 10 grilhões (fetters) do budismo. Li
isso há muito tempo, há uns anos atrás e o penúltimo estágio era a inquietude e
que a porra não vai.
O: Desconheço isso, pois nunca
tive saco para o budismo.
F: Nem eu, mas já li, está lá
escrito sobre a inquietude. No budismo, a inquietude também está lá, na raiz de
tudo. Mas não é por isso que chegamos nela... Sentimos isso, dane-se a
explanação.
O: Sabe, parece-me muito lógico
que temos de permitir que ocorra um assistido colapso da estrutura psíquica
pela qual funcionamos, visto que, por meio dela, não conseguimos solucionar a
inquietude do nosso viver, nossa ausência de conexão real. Parece-me que a bola
da vez é assistir a estrutura se retorcendo.
F: Sim, muito lógico isso!
O: Ver e sentir suas
dependências, sua confusão, suas somatizações, ver tudo isso, mas sem querer
fazer algo para se libertar de tudo isso, apenas ver e sentir, deixar ser, ver
até onde isso pode chegar, tudo isso de modo muito maduro, muito consciente,
muito passivo, não reativo.
F: Parece que inquietude é bola
da vez.
O: Sempre foi a bola da vez, só
que estávamos ocupados com outras bolas. Não havia maturidade para ver e ficar
com isso sem aceitar por condicionantes doações psicológicas de terceiros.
F: Não havia!
O: Se não estivéssemos nos
narcotizando com algo, sempre estávamos em busca de alguém que nos apontasse a
ação correta pela qual pudéssemos saber o que é liberdade, felicidade e
integridade. Nossa confusão era tão grande, que não conseguíamos perceber a
confusão na própria vida daqueles que nos prometiam por ajuda. Não conseguíamos
ver como eles mesmos, não sabiam o que era a verdadeira intimidade, da qual se
protegiam através do manto da respeitabilidade. A própria liderança e
respeitabilidade, foi a droga para qual eles migraram. Mas tudo isso era
imperceptível aos nossos olhos. Não conseguíamos ver o jogo de migração de
dependências por meio da dependência padrinho-afilhado, mestre-discípulo,
analista-analisado... Mas tudo isso nos foi revelado e, nessa revelação, a raiz
de tudo está se revelando cada vez mais: a contínua inquietude da estrutura
condicionada.
Pelo que observei até aqui, se
não ocorrer um colapso total da estrutura — não se trata mais de colapsos
pontualizados, setorizados —, se não ocorrer um colapso integral da estrutura,
não temos como saber se é possível ou não uma existência num estado de ser
livre de qualquer tipo de condicionamento psíquico. Por breves experiências
passadas, sabemos que esse estado é uma realidade.
Vou almoçar, no falamos mais
tarde.
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