F: Diante de tudo que falámos ontem, se sentíssemos o bem-estar,
talvez estaria tudo certo, pronto, já era tudo. Se nem com bem-estar não nos sentirmos
bem, então, acabou.
O: Talvez, não sabemos, isso é mera conjectura. Quando usamos
a palavra "se", já estamos na ilusão; para mim, ela é sinônimo de
fuga. O que temos é a base complexada, insegura, dependente, inquieta, base
essa que não sabe como sair da rotina que ela sente ser desprovida de sentido
real.
F: A abordagem correta seria: É possível ficar com isso? Porque
é isso que há. O que há é isso.
O: Chegamos ontem nesse ponto.
F: É possível ficar com isso, com essa sensação? Esse me
parece ser o ponto. Todo mimimi e chororô foram arrancados e já vimos que não
há mais possibilidade de fuga. Há momentos que o próprio organismo cérebro-corpo,
por si mesmo, sai fora da inquietude.
O: Se não há fuga, não faz sentido a pergunta: “É possível
ficar com isso?” Vimos ontem que existe fuga da inquietude, até pelo uso do
raciocínio.
F: Então posso mudar a pergunta: A sensação desconfortável
pode estar ok como é? Ou até quando vamos sentir que temos que fazer algo
enganoso para alterar a própria sensação? Porque vimos que não altera. Essas
perguntas me parecem mais coerentes.
O: Para mim, essas perguntas são novas formas de fugas. Elas
não servem para nada, visto que a base de inquietude permanece com ou sem essas
perguntas. Xeque. Penso que, sem uma mutação na base, permanece o mesmo
alicerce. O máximo que estamos conseguindo é saber como suportar a base
inquieta sem derramar a mesma nas ambientações. E pela observação da mesma,
conhecendo mais e mais de suas facetas.
F: Enquanto a sensação desconfortável for mais que apenas
isso, ela gerará mais inquietude, sendo ela a base e o limite.
O: Xeque. Enquanto dentro da cela, o máximo que você pode
conhecer é mais e mais sobre a cela, conhecer como você se sente nela.
F: Sim, xeque. Perfeito!
O: A cela é a nossa adquirida estrutura mental emocional
complexada, uma estrutura com base no medo, no cálculo autocentrado.
F: Ela é mal-estar. Chegamos nisso.
O: Penso que, não despertando uma qualidade de percepção
superior, ficamos nisso.
F: Também não sei se é questão de percepção, pois, conforme
nossa percepção ampliou, também trouxe mais inquietude. A percepção não sanou a
inquietude. Parece-me outro joguete: Temporariamente parecia funcionar, mas só ampliou
a inquietude. Não que temos controle sobre isso. Não temos nenhum controle e esse
sempre foi o movimento do nosso viver.
O: Não vejo assim. Várias formas de inquietude já foram
superadas, ficando a base de inquietude original, aquela que você pode ver nas
crianças, a natureza exata de todo tipo de inquietude. Ficou a base.
F: Para mim, fica claro que sempre foi essa inquietude, o
resto, era tudo purpurina. Hoje não consigo perceber de outra forma. Mesmo o
uso de drogas, tinha como fundo essa base de inquietude. Sempre foi o mesmo
mecanismo, sempre foi isso.
O: Não vejo assim. A base inquieta estava lá, mas não era
percebida porque estava encoberta pela inquietude do uso de drogas ou de outro
comportamento obsessivo compulsivo.
F: Era sempre esse fundo de inquietude que funcionava como
tentativa de sair dele. É a própria base de inquietude que, aqui e agora, busca
descobrir um modo de sair dela. Esse é o looping.
O: A percepção tirou a inquietude do uso da droga.
F: Mas saindo a droga, ficou a base de inquietude original.
O: A percepção também tirou a inquietude que sentíamos
diante da limitação da sala de anônimos. Estou mostrando que havia várias
inquietudes acrescidas a base de inquietude original, então, na realidade, a
percepção não aumentou a inquietude. A percepção só retirou as ilusões,
deixando exposta a base de inquietude original.
F: Vejo que eram só galhos da mesma inquietude. Ficou só a
base e a percepção de todos os truques que a estrutura tenta aplicar.
O: Veja, a percepção findou com a inquietude da busca de
poder, de prestígio, de intrigas românticas e sexuais, da busca de um maior
sucesso financeiro...
F: Arrancou os sonhos de carreira em renomada estatal, etc.,
etc. A percepção detonou tudo isso. Não há nada lá... cargos, títulos, estátua,
nome na parede ou numa ponte... o final é tosco, servindo apenas para camuflar
a inquietude original. A percepção arrancou tudo. Não há mais como se envolver
com tudo isso. Hoje, só cumpro protocolo.
O: Sim, arrancou um monte de inquietude que acobertava a
percepção da inquietude original, que mascarava a base. Então, a ampliação da
capacidade de percepção, arrancou o acréscimo de inquietude.
F: Sim, podou para que pudéssemos chegar na base de
inquietude original.
O: Sim, ficou a base, portanto, não aumentou a inquietude,
só diminuiu as distrações, os objetos anestesiantes.
F: Sim, a base que, a meu ver, tem sua origem no imaginal e nas
influências do ambiente. A observação pega o fluxo do imaginal sensorial
condicionado, só que não acaba com ele, algo passa, ocorre alguma identificação,
da qual saíamos cada vez mais rápido, mas joga novamente em outra manifestação do
fluxo mecânico.
O: Pelo fato de ainda estar ocorrendo a identificação com o
imaginal que alimenta a inquietação do sensorial, é que afirmo que a percepção
precisa ser de uma ordem superior à que alcançamos até aqui.
F: Para mim, isso é uma conjectura. Como não temos isso, não
sabemos.
O: Não vejo assim. Você mesmo disse que que algo passa. Se passa, porque passa? Porque o mecanismo não
foi percebido.
F: Mas aí o cara enlouquece. Ficar o tempo todo olhando isso,
o cara pira. Não faz sentido ficar o tempo todo observando a ilusão.
O: Isso sim é uma conjectura.
F: No momento, vejo que não há mais necessidade de esmiuçar no
imaginal, pois é como uma tela ligada, projetando trailers desconexos,
contraditórios. Não adianta mais ficar assistindo; deixa lá.
O: Se não perceber a identificação, ela nos toma.
F: Veja o próprio mecanismo já pegou o lance da observação;
ele sabe quando rola a identificação, e sai, solta... Mudou como era no início
do processo, onde tínhamos que ficar atentos, pois as projeções do imaginal
causavam dor... Hoje nada, a coisa mudou, não há mais identificação com o
conteúdo projetado pela mecanicidade do imaginal. Isso que quero dizer. Também
houve um mecanismo de não se ferir mais com o imaginal, pela identificação inconsciente.
O: Mas não mudou o que é sentido na base; levou você para o
pátio da prisão, deixando você se distrair com dez minutinhos de sol.
F: Não disse que mudou. E o que tem?
O: Falta uma qualidade superior de percepção.
F: Não sabemos. O que tem é isso, a base de inquietude, o mal-estar.
O: Você pode não saber, mas para mim, isso é algo muito claro:
carência de uma percepção maior, carência de lucidez. Chegamos aqui pela
ampliação da capacidade de percepção. Parece que tal capacidade de percepção estancou.
F: E mais ainda, pela capacidade de sentir a inquietude, e
de ficar com ela.
O: Penso que a capacidade de percepção precisa ir além da
que se apresenta no momento... Perceber algo além da base de inquietude.
F: Ou sentir essa “paz de espírito”... Para mim, isso faz
sentido.
O: Caso contrário, só percebemos a inquietude básica.
F: Mas o fato é a inquietação.
O: A percepção está criando condições de perceber as ilusões
de fuga que inquietude básica lança constantemente.
F: Você usa a palavra “percepção”. Há um mecanismo
inteligente aí. Não sei se é o que você chama de percepção. Eu bato na tecla de
percepção porque, a grosso modo, são os sentidos que fazem tudo isso no cérebro.
O: Não vai saber até perceber.
F: Discutível, mas não vou entrar aí. Segue.
O: Não discuto isso: ou percebe ou não percebe. Veja, muitos
chegaram aqui e não perceberam o que você percebeu com o material do paradigma.
F: Pode ser que a própria percepção seja a grande causadora
de toda confusão. Ela é subjetiva, transforma tudo em subjetivo. Muito óbvio o
que estou afirmando. A percepção faz com que, literalmente, tudo gire em torno
de nós. É ela que nos mantém numa base autocentrada; foi a percepção que criou
um ponto de referência, onde, a grosso modo, ela criou a separação, fazendo com
que nos percebêssemos separados do resto.
O: Por isso que afirmo que a percepção precisa alcançar um
ponto superior, pois não há outra ferramenta.
F: A percepção pode não ser a ferramenta.
O: Isso é uma conjectura. O que temos são níveis de
percepção da realidade. Todo sistema sensorial é feito para perceber a
realidade, perceber e assimilar.
F: Não só isso. A percepção vem depois. Podemos questionar
isso. Somos pensadores ao extremo. Quer ver nossa percepção falhar... Fecha
olho aí e escuta um som qualquer. Diga se o som acontece dentro ou fora de você?
Se há limite entre som dentro ou fora? Cadê esse limite? A percepção é que está
causando a confusão. É ela a limitadora da nossa experiência. Tem que ser fora
do nível de percepção atual fora dela, não por ela, porque a percepção sempre
vem depois do que é.
O: Por isso que afirmo que é preciso algo como que um
derrame de percepção superior, um despertar de uma qualidade superior de
percepção da realidade.
F: Veja, ela está pega em sua limitação. Enfim. Segue.
O: Véio, não torra! Ou você percebe algo diferente aí, ou
vai ficar todo dia na mesma punhetagem. Ou percebe algo inusitado, diferente,
ou é essa inquietude básica de todo dia.
F: Fechou; então, game over. Boa!
O: Claro que chegamos num game over... Não tem como perceber
outra coisa por mais que nos esforcemos, por mais que tenhamos esse desejo por
uma percepção maior. Chegamos num game over, porque isso não depende de um
esforço consciente de nossa parte. Ou percebemos, ou não percebemos e
continuamos na mesma limitação de percepção, onde, o que há, é a base de
inquietude. Se não perceber, pode deitar as peças no tabuleiro do cotidiano.
F: Está bem!
O: O fato é muito simples de ser percebido... Tome por
exemplo, o seu filho... Veja se ele consegue perceber a realidade do modo que
você a percebe... Vê se outros confrades que chegaram com você, e que já não
estão mais aqui, perceberam isso que você percebeu. Veja, a qualidade está no
nível de percepção. Se ela não for ampliada, permanecemos limitados. Chegamos
num ponto de limitação de percepção da realidade, a qual sabemos que, por mais
avançada que seja, ainda sentimos que a mesma se faz de modo fragmentado, ainda
percebemos em partes. Estamos num momento de angústia, muito semelhante ao que
vivemos lá traz diante da percepção da limitação do nível de consciência de um
grupo de anônimos, onde falávamos com nós mesmos: não pode ser só isso! E, de
repente, sem qualquer esforço consciente de sua parte, surgiu algo que lhe
proporcionou uma percepção expandida da realidade do funcionamento de seu
condicionado mecanismo mental emocional, ou seja, das suas ferramentas de
percepção da realidade. Foi só assim que você percebeu algo além daquilo que
era limitadamente compartilhado numa sala de anônimos. Então, penso que o mesmo
precisa ocorrer no momento que estamos atravessando. Temos que ter um derrame
de percepção que unifique nossos fragmentos de percepção da realidade. Se isso
não despertar em nós, permanecemos no mesmo looping, cuja base, é inquietude, é
mal-estar.
F: Não há nem necessidade real de um discurso retórico sobre
nada além disso. Game over mesmo; acabou; estou concordando.
O: Para mim está muito claro que tem algo que não estamos
percebendo. Tome por exemplo, a percepção da rotina que, por agora, sentimos
ser sem sentido. Nós a percebemos mas não percebemos como transcendê-la de
fato. Não percebemos! Se não percebermos, é mais e mais da mesma rotina. Se
perceber, percebeu! Mas, se não perceber, é mais da mesma inquietação. Ficamos
onde estamos: num avançado platô de percepção da realidade, onde a maioria, nem
sequer pisou aqui.
F: Sim, o processo de descondicionamento cumpriu seu papel, mostrou
tudo.
O: Ainda não mostrou tudo. Só mostrou até o ponto do platô
de percepção.
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