25/05/2021

Sobre o avançado platô de percepção da realidade

F: Diante de tudo que falámos ontem, se sentíssemos o bem-estar, talvez estaria tudo certo, pronto, já era tudo. Se nem com bem-estar não nos sentirmos bem, então, acabou.

O: Talvez, não sabemos, isso é mera conjectura. Quando usamos a palavra "se", já estamos na ilusão; para mim, ela é sinônimo de fuga. O que temos é a base complexada, insegura, dependente, inquieta, base essa que não sabe como sair da rotina que ela sente ser desprovida de sentido real.

F: A abordagem correta seria: É possível ficar com isso? Porque é isso que há. O que há é isso.

O: Chegamos ontem nesse ponto.

F: É possível ficar com isso, com essa sensação? Esse me parece ser o ponto. Todo mimimi e chororô foram arrancados e já vimos que não há mais possibilidade de fuga. Há momentos que o próprio organismo cérebro-corpo, por si mesmo, sai fora da inquietude.

O: Se não há fuga, não faz sentido a pergunta: “É possível ficar com isso?” Vimos ontem que existe fuga da inquietude, até pelo uso do raciocínio.

F: Então posso mudar a pergunta: A sensação desconfortável pode estar ok como é? Ou até quando vamos sentir que temos que fazer algo enganoso para alterar a própria sensação? Porque vimos que não altera. Essas perguntas me parecem mais coerentes.

O: Para mim, essas perguntas são novas formas de fugas. Elas não servem para nada, visto que a base de inquietude permanece com ou sem essas perguntas. Xeque. Penso que, sem uma mutação na base, permanece o mesmo alicerce. O máximo que estamos conseguindo é saber como suportar a base inquieta sem derramar a mesma nas ambientações. E pela observação da mesma, conhecendo mais e mais de suas facetas.

F: Enquanto a sensação desconfortável for mais que apenas isso, ela gerará mais inquietude, sendo ela a base e o limite.

O: Xeque. Enquanto dentro da cela, o máximo que você pode conhecer é mais e mais sobre a cela, conhecer como você se sente nela.

F: Sim, xeque. Perfeito!

O: A cela é a nossa adquirida estrutura mental emocional complexada, uma estrutura com base no medo, no cálculo autocentrado.

F: Ela é mal-estar. Chegamos nisso.

O: Penso que, não despertando uma qualidade de percepção superior, ficamos nisso.

F: Também não sei se é questão de percepção, pois, conforme nossa percepção ampliou, também trouxe mais inquietude. A percepção não sanou a inquietude. Parece-me outro joguete: Temporariamente parecia funcionar, mas só ampliou a inquietude. Não que temos controle sobre isso. Não temos nenhum controle e esse sempre foi o movimento do nosso viver.

O: Não vejo assim. Várias formas de inquietude já foram superadas, ficando a base de inquietude original, aquela que você pode ver nas crianças, a natureza exata de todo tipo de inquietude. Ficou a base.

F: Para mim, fica claro que sempre foi essa inquietude, o resto, era tudo purpurina. Hoje não consigo perceber de outra forma. Mesmo o uso de drogas, tinha como fundo essa base de inquietude. Sempre foi o mesmo mecanismo, sempre foi isso.

O: Não vejo assim. A base inquieta estava lá, mas não era percebida porque estava encoberta pela inquietude do uso de drogas ou de outro comportamento obsessivo compulsivo.

F: Era sempre esse fundo de inquietude que funcionava como tentativa de sair dele. É a própria base de inquietude que, aqui e agora, busca descobrir um modo de sair dela. Esse é o looping.

O: A percepção tirou a inquietude do uso da droga.

F: Mas saindo a droga, ficou a base de inquietude original.

O: A percepção também tirou a inquietude que sentíamos diante da limitação da sala de anônimos. Estou mostrando que havia várias inquietudes acrescidas a base de inquietude original, então, na realidade, a percepção não aumentou a inquietude. A percepção só retirou as ilusões, deixando exposta a base de inquietude original.

F: Vejo que eram só galhos da mesma inquietude. Ficou só a base e a percepção de todos os truques que a estrutura tenta aplicar.

O: Veja, a percepção findou com a inquietude da busca de poder, de prestígio, de intrigas românticas e sexuais, da busca de um maior sucesso financeiro...

F: Arrancou os sonhos de carreira em renomada estatal, etc., etc. A percepção detonou tudo isso. Não há nada lá... cargos, títulos, estátua, nome na parede ou numa ponte... o final é tosco, servindo apenas para camuflar a inquietude original. A percepção arrancou tudo. Não há mais como se envolver com tudo isso. Hoje, só cumpro protocolo.

O: Sim, arrancou um monte de inquietude que acobertava a percepção da inquietude original, que mascarava a base. Então, a ampliação da capacidade de percepção, arrancou o acréscimo de inquietude.

F: Sim, podou para que pudéssemos chegar na base de inquietude original.

O: Sim, ficou a base, portanto, não aumentou a inquietude, só diminuiu as distrações, os objetos anestesiantes.

F: Sim, a base que, a meu ver, tem sua origem no imaginal e nas influências do ambiente. A observação pega o fluxo do imaginal sensorial condicionado, só que não acaba com ele, algo passa, ocorre alguma identificação, da qual saíamos cada vez mais rápido, mas joga novamente em outra manifestação do fluxo mecânico.

O: Pelo fato de ainda estar ocorrendo a identificação com o imaginal que alimenta a inquietação do sensorial, é que afirmo que a percepção precisa ser de uma ordem superior à que alcançamos até aqui.

F: Para mim, isso é uma conjectura. Como não temos isso, não sabemos.

O: Não vejo assim. Você mesmo disse que que algo passa.  Se passa, porque passa? Porque o mecanismo não foi percebido.

F: Mas aí o cara enlouquece. Ficar o tempo todo olhando isso, o cara pira. Não faz sentido ficar o tempo todo observando a ilusão.

O: Isso sim é uma conjectura.

F: No momento, vejo que não há mais necessidade de esmiuçar no imaginal, pois é como uma tela ligada, projetando trailers desconexos, contraditórios. Não adianta mais ficar assistindo; deixa lá.

O: Se não perceber a identificação, ela nos toma.

F: Veja o próprio mecanismo já pegou o lance da observação; ele sabe quando rola a identificação, e sai, solta... Mudou como era no início do processo, onde tínhamos que ficar atentos, pois as projeções do imaginal causavam dor... Hoje nada, a coisa mudou, não há mais identificação com o conteúdo projetado pela mecanicidade do imaginal. Isso que quero dizer. Também houve um mecanismo de não se ferir mais com o imaginal, pela identificação inconsciente.

O: Mas não mudou o que é sentido na base; levou você para o pátio da prisão, deixando você se distrair com dez minutinhos de sol.

F: Não disse que mudou. E o que tem?

O: Falta uma qualidade superior de percepção.

F: Não sabemos. O que tem é isso, a base de inquietude, o mal-estar.

O: Você pode não saber, mas para mim, isso é algo muito claro: carência de uma percepção maior, carência de lucidez. Chegamos aqui pela ampliação da capacidade de percepção. Parece que tal capacidade de percepção estancou.

F: E mais ainda, pela capacidade de sentir a inquietude, e de ficar com ela.

O: Penso que a capacidade de percepção precisa ir além da que se apresenta no momento... Perceber algo além da base de inquietude.

F: Ou sentir essa “paz de espírito”... Para mim, isso faz sentido.

O: Caso contrário, só percebemos a inquietude básica.

F: Mas o fato é a inquietação.

O: A percepção está criando condições de perceber as ilusões de fuga que inquietude básica lança constantemente.

F: Você usa a palavra “percepção”. Há um mecanismo inteligente aí. Não sei se é o que você chama de percepção. Eu bato na tecla de percepção porque, a grosso modo, são os sentidos que fazem tudo isso no cérebro.

O: Não vai saber até perceber.

F: Discutível, mas não vou entrar aí. Segue.

O: Não discuto isso: ou percebe ou não percebe. Veja, muitos chegaram aqui e não perceberam o que você percebeu com o material do paradigma.

F: Pode ser que a própria percepção seja a grande causadora de toda confusão. Ela é subjetiva, transforma tudo em subjetivo. Muito óbvio o que estou afirmando. A percepção faz com que, literalmente, tudo gire em torno de nós. É ela que nos mantém numa base autocentrada; foi a percepção que criou um ponto de referência, onde, a grosso modo, ela criou a separação, fazendo com que nos percebêssemos separados do resto.

O: Por isso que afirmo que a percepção precisa alcançar um ponto superior, pois não há outra ferramenta.

F: A percepção pode não ser a ferramenta.

O: Isso é uma conjectura. O que temos são níveis de percepção da realidade. Todo sistema sensorial é feito para perceber a realidade, perceber e assimilar.

F: Não só isso. A percepção vem depois. Podemos questionar isso. Somos pensadores ao extremo. Quer ver nossa percepção falhar... Fecha olho aí e escuta um som qualquer. Diga se o som acontece dentro ou fora de você? Se há limite entre som dentro ou fora? Cadê esse limite? A percepção é que está causando a confusão. É ela a limitadora da nossa experiência. Tem que ser fora do nível de percepção atual fora dela, não por ela, porque a percepção sempre vem depois do que é.

O: Por isso que afirmo que é preciso algo como que um derrame de percepção superior, um despertar de uma qualidade superior de percepção da realidade.

F: Veja, ela está pega em sua limitação. Enfim. Segue.

O: Véio, não torra! Ou você percebe algo diferente aí, ou vai ficar todo dia na mesma punhetagem. Ou percebe algo inusitado, diferente, ou é essa inquietude básica de todo dia.

F: Fechou; então, game over. Boa!

O: Claro que chegamos num game over... Não tem como perceber outra coisa por mais que nos esforcemos, por mais que tenhamos esse desejo por uma percepção maior. Chegamos num game over, porque isso não depende de um esforço consciente de nossa parte. Ou percebemos, ou não percebemos e continuamos na mesma limitação de percepção, onde, o que há, é a base de inquietude. Se não perceber, pode deitar as peças no tabuleiro do cotidiano.

F: Está bem!

O: O fato é muito simples de ser percebido... Tome por exemplo, o seu filho... Veja se ele consegue perceber a realidade do modo que você a percebe... Vê se outros confrades que chegaram com você, e que já não estão mais aqui, perceberam isso que você percebeu. Veja, a qualidade está no nível de percepção. Se ela não for ampliada, permanecemos limitados. Chegamos num ponto de limitação de percepção da realidade, a qual sabemos que, por mais avançada que seja, ainda sentimos que a mesma se faz de modo fragmentado, ainda percebemos em partes. Estamos num momento de angústia, muito semelhante ao que vivemos lá traz diante da percepção da limitação do nível de consciência de um grupo de anônimos, onde falávamos com nós mesmos: não pode ser só isso! E, de repente, sem qualquer esforço consciente de sua parte, surgiu algo que lhe proporcionou uma percepção expandida da realidade do funcionamento de seu condicionado mecanismo mental emocional, ou seja, das suas ferramentas de percepção da realidade. Foi só assim que você percebeu algo além daquilo que era limitadamente compartilhado numa sala de anônimos. Então, penso que o mesmo precisa ocorrer no momento que estamos atravessando. Temos que ter um derrame de percepção que unifique nossos fragmentos de percepção da realidade. Se isso não despertar em nós, permanecemos no mesmo looping, cuja base, é inquietude, é mal-estar.

F: Não há nem necessidade real de um discurso retórico sobre nada além disso. Game over mesmo; acabou; estou concordando.

O: Para mim está muito claro que tem algo que não estamos percebendo. Tome por exemplo, a percepção da rotina que, por agora, sentimos ser sem sentido. Nós a percebemos mas não percebemos como transcendê-la de fato. Não percebemos! Se não percebermos, é mais e mais da mesma rotina. Se perceber, percebeu! Mas, se não perceber, é mais da mesma inquietação. Ficamos onde estamos: num avançado platô de percepção da realidade, onde a maioria, nem sequer pisou aqui.

F: Sim, o processo de descondicionamento cumpriu seu papel, mostrou tudo.

O: Ainda não mostrou tudo. Só mostrou até o ponto do platô de percepção.

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