19/02/2021

Toda tentativa de explicação racional, não liberta do imaginal

O: Outra coisa que percebo, é que pela ausência de um surto criativo, permanecemos numa rotina de situações que, até aqui, se mostram limitadas em sua significância. Não sei se esse surto criativo, necessariamente, nos jogaria em outras situações, ou se, em sua manifestação, digamos assim, poderia ocorrer uma substancial ressignificação das mesmas, algo semelhante ao espírito da expressão proferida pelo mestre dos cristãos: "Eu torno nova todas as coisas".

Quando faço uso de expressões do tipo "derrame de libertária e integrativa lucidez" ou "surto criativo", me refiro a algo que nos possibilite o conhecimento de uma amorosa e integrativa ação assertiva, na totalidade de nossas relações e atividades. Penso que a presença da amorosa e integrativa ação assertiva, manifestaria a presença de um estado de ser, totalmente fora da caixa dos adulterantes domínios do cálculo autocentrado.

Essas expressões apontam para a ocorrência de algo novo, algo que nada tem a ver com o ajustamento de regras de ações, tomadas no passado por outros indivíduos e propagadas como condições

B: Lendo isso. Seria então que a nossa capacidade de cálculo, categorização existe, mas foi condicionada de forma autocentrada? Egóica? O comichão da insatisfação existe, a capacidade de cálculo e categorização também. Culturalmente condicionada a olhar só para esse abafamento da inquietação, do oco? Na criação de personagem que busca sentido? O eterno? Que tem medo de morrer?

O: A capacidade de cálculo tem seu devido lugar no que diz respeito as coisas técnicas do viver diário, mas não tem lugar no que diz respeito a manifestação de um estado de ser psicologicamente consciente e autossuficiente.

B: Entendi. Seria uma ferramenta e não um modo operante natural, naturalizado na cultura.

F: Na realidade, ficamos presos num conjunto de ideias refinadas... Uma ação espontânea, impensada, racional... Isso não acontece na maioria. Tipo aquela ação que tira mão do fogo antes mesmo de queimar e de sentir dor, tipo isso. A coisa fica num nível raso, preso, grudento. Mas pode ser que algo toque ali, daqui.

B: O looping parece infinito. A dissolução da estrutura implicaria em colocar a capacidade de cálculo em um lugar de segundo plano? Ou acabaria?

O: Aí você está entrando no terreno das conjecturas, que a meu ver, não serve para nada.

B: Sim, é isso. Percebo que nesse estado de observação passiva, estamos vendo o cálculo. Já não fazemos ele de forma tão condicionada. Teria que eclodir uma nova forma de estar aqui.

O: Mas isso me parece ser outra forma mais sutil de cálculo.

B: Caraí, em! Aqui que o cristão tem como o servo acordado quando o senhor chegar: um estado de não reação quando vendo a dissolução. Mas é maluco. Porque mesmo ao perceber o cálculo, pode-se escorregar para um novo cálculo.

F: Isso me parece um cálculo sutil... O que percebo aqui é que sempre, sempre, nossa vida inteira, sempre fomos ajudados, sempre houve alguma coisa que, em determinado momento tocou nossa consciência. Sempre! Foi através da escuta de uma partilha, foi através de um livro, foi através de uma fala, foi através de algo, ou foi através de um insight que ocorreu em nós mesmos. Sempre ocorreu algo, sempre! Percebe? Esse tipo de toque, que sempre ocorreu, seja antes dos grupos anônimos ou mesmo neles, não é uma coisa que você fica ali pensando e tal... Não foi produto da análise, do cálculo forçoso... Não! Quando ocorre esse tipo de toque, você fala, “nossa!” Esse algo que lhe toca, produz uma mudança imediata. Parece-me que essa coisa ainda existe, ela não é desse nível tão grotesco, pegajoso, calculista, entende? Ela não é nada disso aí. Ela não é isso! É difícil expressar com precisão o que sinto aqui por meio dessa nossa reflexão diária. Mas essa coisa aí, ela sempre e dá um toque na gente, assim, do nada... Não tem nada a ver com tudo que já foi escrito, dito ou compartilhado na condicionada estrutura social. Não acho palavras para explicar.

O: Compreendo o que você aponta. Mas, veja, aquilo serviu apenas no que diz respeito a um determinado condicionamento pessoal, não foi capaz de deitar ao chão, a totalidade da estrutura.

F: Mas sinto que isso parece estar ocorrendo em nós. Isso não cobra. É estranho.

O: Mas veja, tudo isso nos manteve como que apagando pequenos focos de incêndios no campo seco da estrutura condicionada, sem colocar fim ao incendiário que é a própria condicionada estrutura calculista, que agora pode estar calculando, por meio da memória de ocorrências passadas, que algo pode chegar aqui e acabar com a inquietude do momento.

B: Isso.

F: Não é isso. Não estou dizendo que vai apagar inquietude.

O: Se não apagar a inquietude, continuamos no grotesco, no pegajoso.

F: Isso então sempre vai acabar aí, na própria fonte da inquietude.

B: A percepção do cálculo produz um cálculo mais sutil, através dos pequenos alívios que apresentou. Mas continuamos na mesma ladainha. Mesmo percebendo que a estrutura perde força, ela ainda vem através de cálculo do que foi experimentado.

F: Não acho que seja isso que estou me referindo; me refiro que em determinados momentos da caminhada, algo nos tocou de forma muito simples... e pummm! Sem cálculo. A nossa caminhada mostra isso.

O: Ok. Sem dúvida, mas, mudança não é mutação. O bom é inimigo do melhor que, por sua vez, é inimigo da excelência de ser.

B: Sim, sim! Mas, perceber isso aqui, não é novo.

F: Nessa altura do processo de descondicionamento, não existe fórmula mágica da paz. Nessa altura, não mais. Não vejo ser possível.

B: O dia a dia aciona esse cálculo, nas coisas mais básicas. Daí o estrangulamento causando a angústia, a inquietude. Porque a máquina pifa na tentativa de calcular onde desembocar.

F: Inquietude ainda é resto de identificação com a somatização. Vejo que da mesma forma que recebemos aqueles insights que modificaram nossas percepções, aquilo ainda pode ocorrer. É que sempre foi mais simples do que pensávamos, pode ver aí no seu processo, não tem como negar.

O: O insight não precisa de nosso cálculo, do nosso esforço.

B: Sim, ele ocorre sem nossa participação consciente.

F: Sim, sem esse limbo consciente.

B: De qualquer forma, alguém que de certa forma não foi "tocado" ou que não experimentou o que não tem nome, por meio do cálculo, não chega nessa percepção.

F: Pode ser essa a coisa. Não é só aquilo que foi vivido em fragmentos, que deve ser isso. Aquilo é algo além até disso tudo. Mais ainda. Aquele estado lá ultrapassa tudo, como que se materializasse isso tudo que é mais simples.

O: O fragmento nunca apresenta o Todo, mas o Todo sempre apresenta os fragmentos. Mesmo que venha um novo fragmento de percepção da realidade, a grotesca e pegajosa estrutura permanece, só que um pouco mais esclarecida quanto ao funcionamento de sua estrutura. Foi o que ocorreu até aqui. Precisamos conhecer a transcendência da estrutura.

F: Pelos fragmentos, a estrutura permanece.

B: Perfeito.

F: Vamos com calma... A estrutura está aí, sendo vista pelo que é. Dizer que “Precisamos conhecer a transcendência da estrutura”, isso para mim, já joga longe. Me parece que pensamento não pode ser parado, nem as sensações, o fluxo segue em sua mecanicidade não solicitada, mesmo depois dos insights ocorridos. Então, a questão não deve ser assim, tipo, eliminar algo.

O: Não mesmo. A superação de qualquer coisa pontualizada, qualquer mania, qualquer tendência, qualquer dependência, pelo menos até aqui, não colapsou o funcionamento da estrutura.

B: Entendo que a estrutura permanece. Mas me parece que não tem outro "caminho". Esse estado da observação passiva não reativa, parece ser uma "parte" da realidade que permite a dissolução e não a destruição, não? Mas dilui... Houve percebimento de que é falso.

O: Isso é o mesmo que meia mulher grávida... Não trouxe o rebento! Ainda não deu a luz.

B: Saquei. Não é uma dissolução, seria a eclosão do novo?

F: Eu não disse que vai colapsar; nada colapsou. Dom Quixote lutando contra moinho, vida toda foi assim. Percebe, nada disso colapsou. Não temos nenhuma escolha diante disso. Nenhuma! Não se trata de ser pessimista ou depressivo. Não é nada disso. Ao contrário.

O: Tudo que fizemos até aqui, só foi capaz de colocar determinados condicionamentos em estado de stand by.

F: Veja quantos livros temos na estante... Fomos Don Quixote, O Cavaleiro Andante. Lutando a vida inteira contra o rei, joga as cartas, lê a minha sorte, tanto faz a vida como a morte, o pior de tudo eu já passei. Veja que não temos o que fazer, não temos. Não se trata de depressão, nem de tristeza, não é nada disso.  

O: Não sei se podemos afirmar que o pior já passamos.

F: Até o momento, afirmo que sim, eu consigo ver que sim, quanto ao amanhã, não posso afirmar que sim.

B: Mas fica uma expectativa aí, a da eclosão, a do colapso, não fica?

F: Eu não tenho expectativa, estou zerado aqui, sem estar deprimido ou coisa parecida. Nada. Simplesmente vejo a mecanicidade do fluxo não solicitado... Se parar, talvez, mas será por si, uma reflexividade.

B: Buguei aqui, no que diz respeito a expectativa de eclosão, de colapso.

O: Estamos assistindo toda tentativa de negociação, todo cálculo que passa na tela do imaginal. Parece-me ser a única ferramenta que dispomos, ferramenta essa que tem feito o serviço de um poderoso “fio terra” que impede os raios da reação emotiva escapista.

B: Sim. Posso estar nessa negociação. Mas é o que passa aqui. Faltam palavras, não sei. Nem penso no que tenho que falar, às vezes, mas vem. Só então se assim fora o percebimento do ops, estou no cálculo.

F: Estamos observando passivamente, todo descontrole, confusão, o imaginal tentando achar uma saída, o seguimento do fluxo, o baile... A observação é ainda consciente, se tornando natural, cada vez mais sem esforço. Mas ainda percebo que isso não é mais tão caótico quanto já foi. A confusão já foi nossa rotina de emotivas reações insanas. Veja que a própria estrutura sofre uma forte influência da observação. Ela continua confusa, desconexa, volátil e tal; a natureza exata dela pode ser essa, enfim! O fator da observação passiva não reativa atua ali. Esse é o ponto.

B: Poxa. Comentário lúcido, cara. Clareou.

F: O fator observação atua ali, não sou eu quem faço, nem você, apesar de parecer, mas veja bem se é. Para mim é isso: Há uma inteligência atuando nisso tudo, só que nossa rotina, nossa consciência medíocre, nossos apegos e mimimis mais sutis, ficam interferindo ali. Não é algo simples, não. Pode ser que isso seja tão simples, que fica perdido na total punhetação mental.

B: Estamos observando. A angústia, por vezes, suga aqui. Mas o observar parece uma bênção. Não sei se devo chamar assim.

O: Não é preciso nomear a somatização, visto que ela funciona em loopings de manifestação, por ser volátil. Podemos diferenciar na manifestação, mas só no momento, pois trata-se de um looping volátil.

F: Nomeou, ela deita e rola, faz morada, passa o dia, semana, mês aí... Já, já, vence aluguel. São só sensações, pelo menos isso aqui está claro.

O: Um looping não só de sensações, mas de imaginações que desencadeiam as sensações, que por sua vez, reforçam o fluxo de imaginações e cálculos. É um delírio assistido de modo passivo e não reativo.

F: Ou é uma imaginação que desencadeia ou existe alguma sensação, por exemplo, você sente uma simples dor de barriga, e o imaginal arrebenta, com os flashes de dramaturgia de morte, angústia, etc., etc., etc. O que temos é isso; algo está tornando capaz de assistir isso tudo, sem as velhas reações neuróticas. Só que isso ainda é superficial, apesar de ser bem o estado atual da nossa caminhada, vamos dizer assim, tem se mostrado funcional. Mas quero dizer ainda que, a meu ver, há uma coisa que está agindo aí... Deve ser química, sei lá, algo está limpando.

O: Sim, está descondicionando, está trazendo clareza e centramento.

F: Algo está trabalhando para nós, talvez seja assim, mas não sabemos... Tudo isso ainda fica muito na análise mais refinada. Eu ainda sinto aqui, que deve ser até mais simples que isso. Não sei explicar por que isso está rolando aqui. Algo então leva para isso... Não estou afirmando nada de Deus, nada disso. Mas é algo que não sabemos, só não dá para saber, mas tem algo acontecendo aí.

B: Sim. A inteligência que faz nossa digestão, que enche nosso pulmão, sofre interferência do delírio imaginal sensorial.

O: Essa mesma inteligência pegou o jogo do imaginal sensorial e suas reações adulterantes. Pegou o truque adulterante de querer resolver tudo pelo cálculo, por esforço, por reação. Essa mesma inteligência, aponta para a possibilidade de um colapso da estrutura por meio da ferramenta da observação passiva não reativa. Qualquer outra ferramenta, cai no looping conhecido, são ruas que já sabemos onde vão dar.

F: Para mim é isso que rola, e faz todo sentido. Não é lógico, não é racional. Mas isso que quiz dizer que sempre agiu, do nada, sem lógica, sem padrão... Não estou dizendo de estado, nada. Aquilo já é muito além até de um estado, estou dizendo de algo mais simples.

O: O que estamos fazendo por meio da observação passiva não reativa, vai contra toda lógica e razão estabelecida, pois descontrói qualquer caminho, qualquer opção de condicionamento. Trata-se da prática da negação, de modo inteligente.

F: Essa inteligência, não sei explicar, mas é possível deixar ela agir? Percebe o ponto? Porque me parece que esse já é o ponto, não? Mas ainda vou mais além, não diria nem mais que se trata de uma prática, mas eu entendo.

B: Deixar ela ser, me parece ser só observar, só ver...

F: No condicionado e compartilhado modus operantes, tudo precisa ser quadrado, redondo, triangular... Isso não é assim, nunca foi, só que parecia ser, mas não foi.

O: Ver sem qualquer ação da estrutura... Essa me parece ser a real e única entrega.

B: Não percebo esforço em ver, e sim no interpretar. Vejo algo e já vem a categorização da memória. Mas parece que tem um gap, um espaço antes da categorização.

O: Na categorização, a observação não ocorreu de forma não identificada.

F: De novo entramos num modo que me parece complicado. Para mim há algo já rolando, isso é muito claro aqui, muito, não é possível ver o que nem como nada. Na visão, difícil, consigo no ouvir, na visão não consigo, no ouvir e no sentir sim, no cheirar também. Não é possível ver como é isso que está fazendo essa coisa fluir. Simplesmente estamos seguindo. Até fios de cabelos contados me parece ser fato.

O: Toda tentativa, por mais racional que seja, para tentar explicar o que nos ocorre, não nos liberta, ao contrário, só nos lança novamente no início do looping do imaginal.

F: Exato. Então chegamos nisso, algo do tipo... “Não andeis solícitos pelo dia de amanhã”... Seria isso, tudo indica que sim. Onde chegamos então?

B: Parece então, que a observação já seria uma parte da inteligência. Parece que ela acontece por si.

O: Não creio que seja a inteligência, mas um portal para ela. Se essa inteligência estivesse aqui no que diz respeito ao mecanismo, não estaríamos inquietos, confusos.

F: Inteligência parece usar isso, não sabemos, não tem como; só que há uma inteligência nisso.

B: Sim. Mas o ver está acontecendo...  Quando acordo de manhã o ver acorre, mas aí a avalanche do imaginal interfere.

O: Temos que parar para o almoço. Podemos continuar depois?

B: Tranquilo, Out. Vai lá!

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