01/02/2021

Não há fuga para o looping da inquietude do oco

 

F: No fundo são só sensações e muitas explicações e os porquês. No que diz respeito a essa inquietude primal, não há onde chegar, não há onde ir, muito menos o que fazer. Já tentamos de tudo, tudo já foi visto. Surge a sensação desagradável, que você pode chamar de oco, de vazio ou de inquietude, seja lá o nome que você preferir... Ai o imaginal entra com o looping que afirma que “isso não tem sentido”, que “viver não faz sentido” e, com isso, mais sensação desagradável, e para esse acréscimo de sensação desagradável, mais imaginal e looping vai se cristalizando.

O: Há momentos em que o imaginal lança que o oco é insuportável, foi medindo a intensidade com momentos vivenciados no passado. Se não está espeto na observação, o indivíduo cai na autopiedade, no mimimi, no chororô, sai apelando pra tudo que tem na mão pra tentar sair do oco... muda o fundo do celular, baixa outro aplicativo, tenta um joguinho... não tem limites para as criações de fuga que partem do imaginal.

O: O indivíduo que for fraco, quando se depara com isso, pode chegar mesmo num ponto de loucura, até mesmo se identificar com o supremo impulso emotivo reativo escapista, a birra suprema do suicídio. Mas se a observação estiver bem amadurecida, toda sugestão do imaginal é vista como sem sentido.

F: Sim, o indivíduo pode se identificar com isso, porque é o imaginal que traz toda dúvida, toda sugestão insana. É ele que ilusoriamente liga o sentimento ruim, oco ou inquietude; é ele que entra com toda papagaiada, que depois se somatiza no sensorial. Cai no sensorial, pronto, está pego! Não tem mais o que fazer a não ser sentir e esperar pela eliminação da carga energética que a estrutura produz.

O: Quanto mais o falso é percebido, mais a inquietude se faz rasgante, mais come o peito. Vai ver que é daí que os cristão criaram a expressão “vinda do salvador”... Vivenciando a dor da inquietude, em estado de espera de algo que pudesse livrá-los da dor crônica da inquietude original.

F: O oco por si já é terrível, mas, se o indivíduo não estiver atento, o imaginal tem capacidade de triplicá-lo.

O: Mas não vamos entrar na questão do imaginal, esse não é o caso que estamos abordando. Vamos tentar ficar apenas com a sensação desagradável, com a inquietude, com o oco, com a ausência de conexão, com o vazio de um sentir significativo. O objeto de estudo é o oco.

F: O oco não sai, esquece! É um movimento que parece não ter fim, assim como o imaginal, é algo mecânico e não solicitado. Aqui, sempre foi isso, só não havia a percepção disso, não havia a compreensão do funcionamento do mecanismo da estrutura.

O: Se você observar bem, verá que o imaginal até aliviava o oco.

F: Imaginal cria sensações que, por vezes, aliviam a percepção do oco, algo como um alívio momentâneo.

O: Mas você percebe que, menos identificação com o imaginal, mais oco?

F: Já disse, o oco não sai. Já tem uns dois dias que eu não sinto absolutamente nada além de oco... mesmo observando, a inquietude está sempre lá, direto, não sai. Esquece. Aqui o sentimento de impotência já se instalou.

O: O oco surge da percepção que a observação traz de que toda sugestão do imaginal não faz sentido de ação.

F: Exatamente isso. Antes era vivido tudo que o imaginal trazia. Ok! Não estamos mais nos identificando com as insanas sugestões do imaginal, mas, onde estão os bons sentimentos?

O: Imaginal só pede por insanidade, a sociedade mostra isso claramente.

F: Isso que tentei dizer ali. Toda dúvida, toda sugestão, todo looping vem dali. Mas dane-se o imaginal, estamos carecas de ver isso. A questão que importa é: Por que o oco não tem fim? A não ser que fiquemos com ele, não dá para saber no que ele vai dar. Ou podemos ignorá-lo do mesmo modo que já ignoramos o imaginal?

O: Não tem como ignorar, pois o oco é sentido no corpo, não se trata de uma imagem na tela mental.

F: Ignorar não acho possível. Só nos resta senti-lo, não tem como fugir dele. Você pode se iludir quanto for na fuga, mas não há fuga.

O: Toda fuga é oca desde a saída, terminando em mais oco.

F: Não tem fuga... A inquietude me cospe, me come e me beija... Ela grita, saiba que estou em você, mas você não está em mim... Isso é a inquietude, esse é o oco.

O: O próprio imaginal se mostrou oco, por isso ele não é mais a questão.

F: Ele é oco. Cada andada ali é literalmente perder tempo, de fato, ele já não é mais a questão de estudo.

O: Do mesmo modo que Deus não é mais a questão, pois o mesmo foi visto com mais uma das criações do imaginal, como objeto de fuga do oco, da inquietude primal.

F: Quanto ao imaginal e suas criações, é fim de papo; tá tudo morto enterrado agora já que também podemos celebrar a estupidez de todas as suas criações.

O: Sim, sexo, drogas, bebidas enteógenas, compras, passeios, esportes, trabalhos, leituras, crenças, sistemas, programações, práticas, exercícios respiratórios, entre tantas outras coisas mais... Tudo foi devidamente observado e percebido como infrutíferas variantes de tentativas de fugas do oco.

F: Quando muito, tudo isso só nos mantém na superfície do oco.

O: Esse é o buraco negro donde surge o bigbang do imaginal, com suas criações ocas, daí que surge a fórmula: Oco+imaginal oco = oco².

F: Isso. Surge a sensação desagradável, que é igual ao oco e a inquietude, ai entra o imaginal com falas do tipo “isso não tem sentido!” e aí, mais oco, mais inquietude, mais imaginal com falas e imagens, e o looping se cristaliza.

O: Sim, quando percebida a inquietação, o imaginal sempre entra com um “tenta isso, tenta aquilo” e, mais oco!

F: Aí mais que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado, macaco, praia, carro, jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco.

O: A ignorância do oco parece ser uma benção.

F: Exato.

O: Tudo mundo está feliz até não perceber o oco naquilo que imagina fonte da sua felicidade. Uma vez percebida a ilusão, cadê a felicidade?... E a catraca do objeto de felicidade gira rapidinho! Você conhece bem isso: se imaginou feliz com drogas até sentir a dor da ilusão; aí conheceu os grupos anônimos, pensou ser feliz por isso, até perceber o oco em tudo aquilo... Quando percebeu, como ficou a felicidade? Viu que era falsa, não foi? Antes era só alegria, o oco não mordia, a vida era doce e não ardia, mas aí um dia, ou quem sabe dos ou três, eu só queria superar a inquietude de uma vez...

F: Exato. Mas quando se entra nisso, você vê que não é bem assim, não é da noite para o dia, não tem objeto mágico que crie o tal do “Final Feliz”. Se nem o Deus imaginado criou isso, o que mais poderia criar?

O: Enquanto o oco não morde, não tem como cair o castelo de ilusão; aí, quando a ilusão é percebida, quando cai o castelo, o que fica?... Mais oco.

F: Oco é fim. Ele é tipo: “Estamos conversados e fim de papo!”

O: Já tentamos de tudo e tudo deu nisso. Tome o exemplo da droga... O oco estava lá antes da droga e durante seu uso e após seu uso. O imaginal imaginou uma saída da inquietude do oco pela droga... No início parecia alegria, até bater o oco expandido pelo uso da droga.

F: Sim, mesmo agora, o imaginal está tentando imaginar uma saída.

O: Então chega a percepção da ilusão do uso de droga e... Mais inquietude de um viver oco... nova ação do imaginal prometendo alegria num mundo sem drogas com ajuda dos grupos anônimos... No início parecia alegria, até os discursos da sala se mostrarem ocos, mera verborreia personalista... Sem droga e sem sala antidroga, mais oco... Veja bem que não estou fazendo apologia ao uso de drogas! Só compartilhando o que constatamos em nosso processo.

F: Exato! No início foi só alegria, mas se o uso de drogas ou de grupos anônimos funcionasse, eu ainda estaria lá.

O: Se a sala funcionasse, eu também estaria lá. Ela pode funcionar no que diz respeito a detenção diária de algum padrão comportamental compulsivo — não descartando a possibilidade de recaídas. No entanto, no que diz respeito a liberdade total dessa inquietude primal, ela se mostra ilusória, como tantas outras drogas.

F: Exato! Isso é um fato, pelo menos para mim.

O: Assim, cada dependência falsa caiu, mas o oco, pelo menos até aqui, permaneceu.

F: Ele fincou sua bandeira, até mesmo no castelo da chamada espiritualidade. Ficou claro que toda tentativa, só cria um novo ciclo ilusório, um novo looping ilusório que já nasce velho.

O: É mais do oco nosso de cada dia....

F: E por aí mesmo, permanece a dança de sempre... Da casa pra rua, da rua pra casa, do quarto pra sala, da sala pro quintal , do quintal pro banho, do banho pra geladeira e, no meio disso tudo, o oco comendo solto, sempre o oco fazendo você usar algo ou alguém, sempre o oco comendo e fazendo você comer coisas ocas, assistir coisas ocas, ouvir coisas ocas, pensar coisas ocas. Tudo mais do mesmo, nada novo, o novo já nasce velho. Pode ver!

O: Você sai com a patroa pra conhecer mais do mesmo... Permanece o patético movimento.

F: Tem nada! Zero! Nada! Todos lhe prometem a melhor banda de todos os tempos da última semana, o melhor disco brasileiro de música americana!... Mas tudo oco! Detonou!

O: Quando você saca tudo isso, os dias passam lentos e aos meses seguem aumentos de inquietude! Cada dia você leva um tiro do imaginal que sai pela culatra... E os dias passam lentos!

F: Oco estripou tudo, não deixa nada, ele não acaba, pode tentar o que quiser. Hoje já vi trailers dumas vinte séries... Como você diz, patético!

O: Não dá, a tv está fraca demais!

F: Sobrou a cama! Não tem o que fazer. Tudo se mostra muito superficial, tudo muito periférico, nada que bate fundo. Fica esse viver vazio, sendo empurrado pela barriga, agora, nem mesmo com direito ao mimimi, ao chororô, a autopiedade. Rapaz, nessa altura do processo de descondicionamento, se reclamar do calor, é o imaginal discorrendo o mimimi no calor. Não tem fuga, a observação pega todo movimento da estrutura. E não como, no quarto de pensão, tentar uma transmutação. Não tem como esperar a nave, não tem o tal moço do disco voador que nos leve para onde for. É tudo mentira! Não tem o que fazer. Você pode assaltar a geladeira sossegado, mas também não vai adiantar. Pode se sentar com o oco também pra ver se com isso ele passa... Não vai mudar nada... Já já ele está de volta, se é que ele sai por um minuto se quer. Está pego! Aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer!

O: Até aqui, isso se mostra um fato!

F: Mente fala assim: para tudo, larga tudo... Chega! Segue! Cai na estrada!... Mas você já está ligado! É igual a música do Gil... Pode tentar o que for... Até mesmo falar com Deus... Não vai dar em nada, nada, nada... do que você pensava encontrar... O oco está lá, sempre no fim do movimento. Game over! Sem saída! Observação lógica! Está na cara, só não vê quem não quer ver. Observação vasculhou tudo. Game over! Tudo que temos são informações de segunda mão; fora a inquietude que sentimos, o resto é tudo segunda mão. E mesmo dentro dessa inquietude sentida, ainda nesse ponto, a coisa fica muito individual. Conforme vamos avançando na observação, vai ficando muito claro que cada um realmente está sozinho, no sentido do que se sente.

O: A espécie humana sente o mesmo que você; é o seu imaginal que faz você pensar que sente de modo diferente. Outro pensamento ilusório. O que ocorre de diferente, é só o nível de percepção do que se sente, do que move cada ação, só difere no nível de autoconhecimento, mas a base, tem a mesma inquietude primal. O oco surge da percepção da ausência de conexão espontânea, natural, original. A estrutura é a barreira, e ela começa logo cedo... A criança não sabe o que fazer com a inquietude e o adulto, com ajuda de objetos, lhe condiciona uma forma de fazer, até o instrumento e o fazer se mostrarem ocos para a criança. Então o adulto lhe dá outro objeto, ou o próprio colo e a inquietude permanece momentaneamente despercebida. A estrutura sustenta um espaço entre o adulto e a criança, não deixa que ocorra conexão real entre os dois. Há um desejo de conexão real por parte do adulto, mas fica só na simulação, ela não ocorre de fato.

F: Percebo isso aqui, de modo muito claro!

O: Numa observação mais apurada, você percebe que mesmo a criança foi usada como um objeto para tentar aplacar o oco dos adultos, o oco sentido na relação do casal. A criança acaba sendo uma criação do imaginal, na tentativa de um sentido real para o viver, ou uma forma de conexão real entre o casal. Você percebe isso? A criança acaba sendo objeto dos pais, dos avós, dos tios... A família toda se distrai com os movimentos da criança... Até que a criança comece a lhes inquietar... A criança é algo novo que distrai por alguns momentos.

F: Sim, não tem saída. E não precisa de esforço para ficar com isso, pois é isso que tem; já foi terrível, mas agora, é visto que é o que sempre esteve aí. Na realidade, é tipo festa familiar: você sabe que é uma merda, mas é o que tem. Bem-vindo ao oco! Ele esteve aí por toda a sua vida, continuamente recriando as ilusões que sempre desmoronaram como um castelo de areia. É sempre a inquietude do oco fazendo você procurar algo que vai lhe fazer se sentir bem... O que a inquietude do oco está procurando, não existe, e você tem que chegar a um acordo com isso. Não tem o que fazer... Só se a inquietude do oco cair por si mesma. Até o momento, é isso o que eu vejo. Então, querer sair do oco por meio de algo que lhe faça se sentir bem, paradoxalmente, lhe dá ainda mais oco, mais inquietude, mais insatisfação. Sei que você já passou por isso, estou ligado!

O: Pela vontade, pelo esforço pessoal, não tem saída! Se não ocorrer algo que nos apresente uma qualidade interna de plenitude, onde tal plenitude nem seja dependente de nenhum fator externo, parece que estamos condenados a viver esse estado não inquietude, o qual não pode ser transcendido por nenhuma ação de nossa parte. Isso é o que parece! Algo muito semelhante as cenas do filme “Dark City”: Não tem saída desse looping de ilusão!

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