19/02/2021

A assistida impotência de transcendência

O: Bom dia confrade! Estava meditando aqui, sobre a exata natureza que move nossas relações e atividades, nas quais sempre nos vemos envolvidos em situações que produzem conflito, mesmo quando tentamos evitá-lo com o maior esforço. Gostaria de olhar isso com você. Parece-me, cada vez mais, que sem um derrame de libertária e integrativa lucidez, permanecemos amanhecendo sempre para o mesmo looping de pensamentos e emoções inquietantes.

F: Não sei se vai parar (risos). Pelo menos, aqui, o fluxo não para.

O: Nossas relações e atividades permanecem no nível de dependência e codependência.

F: Dependemos de tudo e todos, esse é o jogo.

O: Sim, esse é o jogo da compartilhada estrutura de dependência.

F: Exato. Não há o que fazer quanto a isso, a não ser, apenas sentir o que tem o sentir, mais nada.

O: Sim, porque por não ser lúcida e psicologicamente autônoma, essa estrutura sempre age por meio do cálculo autocentrado, do auto-interesse. Toda ação da estrutura autocentrada, não é ação, mas sim, calculada reação emotiva escapista. Ela foge de uma zona de conflito e, de pronto, cria outra. Ela não dá ponto sem nó, ela tem sempre um coringa embaixo da manga.

F: Exato.

O: Ela sai da casa dos pais para ter liberdade e se casa... Pelo cálculo autocentrado, inicia a dança do ajustamento, da simulação, da intolerância reprimida...

F: As pessoas fazem as mesmas coisas todos os dias e querem sentir algo diferente.

O: Até que a intolerância explode, então, o mesmo looping do cálculo se inicia... Com a mesma estrutura, só que cada vez mais calculista, se separa, se casa novamente ou foge do conflito pelo isolamento que, ao seu devido tempo, se mostra também conflituoso.

F: Exato. Dentro disso mesmo, é isso. Esse mecanismo não é óbvio para a maioria, ninguém vê nada disso.

O: Veja, mesmo o fato de percebermos esse mecanismo de funcionamento, tanto em nós como nos demais, não nos dá o poder de sairmos dessa estrutura com base no auto-interesse.

F: Exato.

O: Querer sair disso, me parece outra faceta do próprio cálculo autocentrado. Percebe? Querer sair, é mais um impulso emotivo reativo escapista em ação. Se não eclodir em nós, uma qualidade de ser que não seja condicionada pelo cálculo autocentrado, parece não haver fim para o looping de inquietude, de conflito nas relações e atividades.

F: Querer sair disso, é o maior cálculo autocentrado.

O: Essa estrutura faz quase tudo com má vontade, sem real entusiasmo.

F: Boa parte de suas ações é cumprir protocolo.

O: Perceba como ela tem sua base na intolerância reprimida.

F: Sim, intolerância reprimida. Essa foi foda... Ficamos carrancudos, birrentos, revoltados, pois o próprio cálculo do que imaginamos ser liberdade, se mostra sufocado... Liberdade de não fazer o que não quer e ter que fazer.

O: Se não for do auto-interesse, é só simulação de boa vontade, a qual tem sua base no auto-interesse.

F: Essa simulação de boa vontade, cujo fundo é auto-interesse, é mostrada de forma clara, no filme “Tigre branco”, na Netflix.

O: Sim, muito claro ali, o funcionamento da compartilhada estrutura autocentrada. Essa simulação de boa vontade, está quase sempre fundamentada no medo da repreensão, do abandono, do desamparo ou solidão. Apesar de percebermos tudo isso, não sabemos como transcender esse modo de ser. Já tentamos por meio do esforço, e vimos que não funciona.

F: A transcendência não é possível pelo esforço. O esforço é uma forma de condicionamento que não supera, de vez, o modo condicionado de ser. Pelo esforço, há sempre a possibilidade de recaída, o medo e o cálculo se perpetuam.

O: Já vimos a furada do esforço; sempre recaímos numa explosão de intolerância, na má vontade, na impaciência ou no impulso separatista

F: O que nos leva a perceber que o esforço é em vão, trampolim de retrocesso; tentar sair disso pelo esforço, torna a estrutura mais forte ainda.

O: Caímos novamente na percepção de impotência de transcendência... Essa percepção não vem com o antigo desespero imaturo, o qual apelava para rezas e súplicas à um Deus imaginário, produto do medo, do desespero e da confusão; trata-se de uma percepção centrada.

F: Sim, sem desespero, sem neurose. Nada disso.

O: Essa centrada percepção de impotência, torna clara a necessidade do surgimento de um estado de funcionamento totalmente diferente. Não se trata de algo condicionado por uma ação de um agente externo, mas sim, nisso que somos no mais fundo de nós, algo que seja anterior a instalação do cálculo autocentrado... Um rebento...

F: O que nos cabe é continuar observando, sentindo o que tiver para ser sentido.

O: Sim, sem se identificar com qualquer reação emotiva.

F: Ficar num estado de espera, sem esperança, pois, no fundo, sentimos que há algo maior que isso... Sentimos isso... Sentimos que nada podemos fazer a não ser assistir o capítulo do dia, o ato do momento...

O: Veja que já tentamos, inclusive, as reparações, mas elas ainda nos deixam dentro da mesma estrutura que recai sempre nos mesmos comportamentos que pedem por novas das mesmas reparações.

F: Reparações são imaginárias, não são reais.

O: Mudaram as estações, nada mudou...

F: Veja, mudou qualidade do sentir o que tem para ser sentido. A própria percepção do sentimento presente.

O: Não digo que mudou a qualidade do sentir, pois sentimos o mesmo de sempre. Digo que mudou a maneira como lidamos com o que se apresenta do sensorial. Veja, mesmo as reparações são parte dos cálculos autocentrados, portanto, não são reparações de fato, é só o mesmo auto-interesse de modo mais sutil. A reparação não faz parar a ação da estrutura, só a mantém em módulo de stand-by, a mantém camuflada por um tempo, até que a reprimida intolerância se derrame novamente.

F: Exato. Percebo o mesmo aqui.

O: Na reparação, ainda há uma simulação de real afetação, mas, numa análise mais aprofundada, torna-se claro que ela é movida pelo auto-interesse, uma forma de impulso emotivo reativo que procura fugir da inquietude causado pelo peso na consciência. A reparação, no linguajar popular, é um mero "passar de pano". Na reparação tentamos apenas a reconciliação dos efeitos e não a dissolução da estrutura que causa toda forma de adulteração da realidade.

Chegamos no ponto em que, se correr a inquietude pega, se ficar com a inquietude, quem sabe, a própria inquietude come a estrutura. Até aqui, essa me parece a única opção que se apresenta. O resto já tentamos, não se mostrou funcional. Nada nos libertou de fato, da má vontade, da intolerância reprimida, da simulação de respeito e bem-querer, nada nos apresentou a livre expressão de ser, a genuína e significativa relação. Permanecemos cada vez mais conscientes, da nossa assistida impotência de transcendência. Sem a transcendência de um modo de vida fundamentado no cálculo autocentrado, no auto-interesse, parece não haver a menor possibilidade da manifestação de relações corretas, ou seja, livre da adulteração dos conflitos e dos jogos de compartilhada dependência psíquica.

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