O: Bom dia confrade! Estava
meditando aqui, sobre a exata natureza que move nossas relações e atividades, nas
quais sempre nos vemos envolvidos em situações que produzem conflito, mesmo
quando tentamos evitá-lo com o maior esforço. Gostaria de olhar isso com você.
Parece-me, cada vez mais, que sem um derrame de libertária e integrativa lucidez,
permanecemos amanhecendo sempre para o mesmo looping de pensamentos e emoções
inquietantes.
F: Não sei se vai parar (risos). Pelo
menos, aqui, o fluxo não para.
O: Nossas relações e atividades
permanecem no nível de dependência e codependência.
F: Dependemos de tudo e todos,
esse é o jogo.
O: Sim, esse é o jogo da compartilhada
estrutura de dependência.
F: Exato. Não há o que fazer
quanto a isso, a não ser, apenas sentir o que tem o sentir, mais nada.
O: Sim, porque por não ser lúcida
e psicologicamente autônoma, essa estrutura sempre age por meio do cálculo
autocentrado, do auto-interesse. Toda ação da estrutura autocentrada, não é
ação, mas sim, calculada reação emotiva escapista. Ela foge de uma zona de
conflito e, de pronto, cria outra. Ela não dá ponto sem nó, ela tem sempre um
coringa embaixo da manga.
F: Exato.
O: Ela sai da casa dos pais para
ter liberdade e se casa... Pelo cálculo autocentrado, inicia a dança do
ajustamento, da simulação, da intolerância reprimida...
F: As pessoas fazem as mesmas
coisas todos os dias e querem sentir algo diferente.
O: Até que a intolerância
explode, então, o mesmo looping do cálculo se inicia... Com a mesma estrutura,
só que cada vez mais calculista, se separa, se casa novamente ou foge do
conflito pelo isolamento que, ao seu devido tempo, se mostra também
conflituoso.
F: Exato. Dentro disso mesmo, é
isso. Esse mecanismo não é óbvio para a maioria, ninguém vê nada disso.
O: Veja, mesmo o fato de percebermos
esse mecanismo de funcionamento, tanto em nós como nos demais, não nos dá o
poder de sairmos dessa estrutura com base no auto-interesse.
F: Exato.
O: Querer sair disso, me parece
outra faceta do próprio cálculo autocentrado. Percebe? Querer sair, é mais um impulso
emotivo reativo escapista em ação. Se não eclodir em nós, uma qualidade de ser
que não seja condicionada pelo cálculo autocentrado, parece não haver fim para
o looping de inquietude, de conflito nas relações e atividades.
F: Querer sair disso, é o maior
cálculo autocentrado.
O: Essa estrutura faz quase tudo
com má vontade, sem real entusiasmo.
F: Boa parte de suas ações é cumprir
protocolo.
O: Perceba como ela tem sua base
na intolerância reprimida.
F: Sim, intolerância reprimida.
Essa foi foda... Ficamos carrancudos, birrentos, revoltados, pois o próprio
cálculo do que imaginamos ser liberdade, se mostra sufocado... Liberdade de não
fazer o que não quer e ter que fazer.
O: Se não for do auto-interesse,
é só simulação de boa vontade, a qual tem sua base no auto-interesse.
F: Essa simulação de boa vontade,
cujo fundo é auto-interesse, é mostrada de forma clara, no filme “Tigre branco”,
na Netflix.
O: Sim, muito claro ali, o
funcionamento da compartilhada estrutura autocentrada. Essa simulação de boa
vontade, está quase sempre fundamentada no medo da repreensão, do abandono, do
desamparo ou solidão. Apesar de percebermos tudo isso, não sabemos como
transcender esse modo de ser. Já tentamos por meio do esforço, e vimos que não
funciona.
F: A transcendência não é
possível pelo esforço. O esforço é uma forma de condicionamento que não supera,
de vez, o modo condicionado de ser. Pelo esforço, há sempre a possibilidade de recaída,
o medo e o cálculo se perpetuam.
O: Já vimos a furada do esforço;
sempre recaímos numa explosão de intolerância, na má vontade, na impaciência ou
no impulso separatista
F: O que nos leva a perceber que
o esforço é em vão, trampolim de retrocesso; tentar sair disso pelo esforço,
torna a estrutura mais forte ainda.
O: Caímos novamente na percepção
de impotência de transcendência... Essa percepção não vem com o antigo
desespero imaturo, o qual apelava para rezas e súplicas à um Deus imaginário,
produto do medo, do desespero e da confusão; trata-se de uma percepção centrada.
F: Sim, sem desespero, sem
neurose. Nada disso.
O: Essa centrada percepção de
impotência, torna clara a necessidade do surgimento de um estado de
funcionamento totalmente diferente. Não se trata de algo condicionado por uma
ação de um agente externo, mas sim, nisso que somos no mais fundo de nós, algo
que seja anterior a instalação do cálculo autocentrado... Um rebento...
F: O que nos cabe é continuar observando,
sentindo o que tiver para ser sentido.
O: Sim, sem se identificar com
qualquer reação emotiva.
F: Ficar num estado de espera, sem
esperança, pois, no fundo, sentimos que há algo maior que isso... Sentimos isso...
Sentimos que nada podemos fazer a não ser assistir o capítulo do dia, o ato do
momento...
O: Veja que já tentamos,
inclusive, as reparações, mas elas ainda nos deixam dentro da mesma estrutura
que recai sempre nos mesmos comportamentos que pedem por novas das mesmas reparações.
F: Reparações são imaginárias,
não são reais.
O: Mudaram as estações, nada
mudou...
F: Veja, mudou qualidade do
sentir o que tem para ser sentido. A própria percepção do sentimento presente.
O: Não digo que mudou a qualidade
do sentir, pois sentimos o mesmo de sempre. Digo que mudou a maneira como
lidamos com o que se apresenta do sensorial. Veja, mesmo as reparações são
parte dos cálculos autocentrados, portanto, não são reparações de fato, é só o
mesmo auto-interesse de modo mais sutil. A reparação não faz parar a ação da
estrutura, só a mantém em módulo de stand-by, a mantém camuflada por um tempo,
até que a reprimida intolerância se derrame novamente.
F: Exato. Percebo o mesmo aqui.
O: Na reparação, ainda há uma
simulação de real afetação, mas, numa análise mais aprofundada, torna-se claro
que ela é movida pelo auto-interesse, uma forma de impulso emotivo reativo que
procura fugir da inquietude causado pelo peso na consciência. A reparação, no
linguajar popular, é um mero "passar de pano". Na reparação tentamos
apenas a reconciliação dos efeitos e não a dissolução da estrutura que causa
toda forma de adulteração da realidade.
Chegamos no ponto em que, se
correr a inquietude pega, se ficar com a inquietude, quem sabe, a própria
inquietude come a estrutura. Até aqui, essa me parece a única opção que se
apresenta. O resto já tentamos, não se mostrou funcional. Nada nos libertou de
fato, da má vontade, da intolerância reprimida, da simulação de respeito e bem-querer,
nada nos apresentou a livre expressão de ser, a genuína e significativa relação.
Permanecemos cada vez mais conscientes, da nossa assistida impotência de
transcendência. Sem a transcendência de um modo de vida fundamentado no cálculo
autocentrado, no auto-interesse, parece não haver a menor possibilidade da
manifestação de relações corretas, ou seja, livre da adulteração dos conflitos e
dos jogos de compartilhada dependência psíquica.
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