O: Gostaria de aprofundar um
pouco mais nessa questão da necessidade de um colapso observado... Já vimos
juntos que a observação não tem o poder de causar o findar do fluxo. Vimos
também que por meio dela, conseguimos não nos identificar com as imagens e
sensações que antigamente nos faziam reagir de modo neurótico, o que adulterava
ainda mais a nossa realidade e ainda cristalizava a débil estrutura psíquica.
O: Mas mesmo a observação, não
acaba com a sensação, com a inquietude, com o oco, com a solidão ou com qualquer
forma de emoção dolorosa. A inquietude, em sua forma de manifestação, vai
minando a possibilidade de viver a experiência da vida em sua plenitude
criativa e integrativa.
Já conversamos sobre isso, sobre
a necessidade de um poder superior à própria observação. Olhando de modo bem
científico, descartamos a ideia convencional de um Deus concebido em nosso
estado de confusão, e percebemos nos relatos históricos, a impotência e o
colapso como fatores determinantes da eclosão de uma significativa mutação
psíquica. Vimos também que o exercício da vontade e do esforço pessoal, em
todos os casos, se mostraram totalmente ineficazes, até mesmo como poderosas
traves de tropeço... "Faço o mal que não quero, mas o bem que quero, não consigo
fazer"... "Eu por mim mesmo nada sou".
F: Sim. Mas toda nossa energia é
jogada nisso e ficamos no nível do imaginal e do sensorial. Esse, a meu ver, é
o ponto que foi ocorrendo e que levou ao colapso anterior e a breve experiencia
do estado incondicionado de ser. Naquele momento, eu estava muito mais atento,
por exemplo, ao que acontecia ao redor, no ambiente. Isso foi ocorrendo.
O: Sim, mas, veja que chegamos
também na percepção de que carecemos de uma libertária lucidez integrativa. Hoje
já temos a percepção de fragmentos do falso, mas não a totalidade da realidade.
F: Tudo era como era... não havia
extras antes mesmo de ocorrer o lance no carro... era como se estivesse apenas
nos sentidos puros sem influência do imaginal. Percebe que gastamos tempo e
energia demais no imaginal... Nossa educação e cultura contribui para isso. Como
eu disse ontem, o imaginal prega um truque, mesmo com raciocínio mais lógico e
apurado, ele cria sensação de que estamos usando-o. De fato, estamos, mas, no
fundo, estamos sendo usados por ele. É algo parecido ao uso de drogas: ficamos
tão intoxicados, que nem nos damos conta do que acontece ao redor. Vírus, verme,
ideia...
O: Continue.
F: Por mais que tentemos ordenar as
ideias, usar a lógica, ela é desfeita, aparenta uma lógica no momento, mas na
sequência, ela se perde igual fumaça, percebe? Por isso só há a observação que
permite ver o truque, o jogo, o funcionamento da estrutura. Vejo que entramos
numa percepção mais profunda: a de que não somos nós quem produz o fluxo, e que
o fluxo não é para mim. Era a identificação ilusória que dava essa impressão e
tornava tudo pessoal. Mas veja por si... Você não faz nada aí para que surja o próximo
pensamento, sentimento ou sensação... Você pode até usar a mente, do mesmo modo
que usa suas mãos, mas vai dar em nada, pois está tudo consumado. Entrou uma questão
mais de perceber que não há controle de nada, nenhuma decisão, nada. A meu ver,
tudo isso é ilusão, pelo menos é o que percebo aqui. Não tem escolha a nível profundo
dessa situação, já tentamos de tudo... Veja nossa própria rebeldia no passado,
a qual foi uma reação a tentativa de não ser condicionado.
O: Sim.
F: Pelo exercício da observação
passiva não reativa, a crença na estrutura caiu, esse me parece ser o ponto. Chegou
naquela parte do filme “Revolver”, onde o personagem central diz para a própria
mente: “Eu não sou você”, “Você não me controla”, essa foi a crença central em
torno da qual tudo estava girando antes da observação.
F: Não sou eu quem faço nada, nem
mesmo piscar os olhos... veja, ficávamos perdidos nas histórias do imaginal,
foram décadas perdido nesses enredos ilusórios; mas não tem nada. Se há algo que
possa causar colapso, isso não sei. O que pode trazer mais clareza? Também não sei.
Mas, penso que é o próprio imaginal jogando mais, mais e mais. E pelo imaginal,
a história continua, não tem fim. Mas com a observação, a crença na história
desaparece, cai a crença, do mesmo modo que está caindo a preocupação com a
qualidade de manifestação do próprio sensorial.
Toda vez que no momento da
observação entra o "se", entramos novamente na identificação com a história
e, novamente, mais uma vez uma forma de crença se instala. No fundo é isso que
vejo. Nós, humanos, nos adulteramos com os rótulos. E olhe por exemplo, para o
mundo da moda, e veja como as marcas, as etiquetas, os logotipos, são tão
importantes! A adulteração se cola a outras adulterações, criando castelos
elaborados de adulteração.
O: Compreendo.
F: Esses castelos de adulteração
é que nos forçam a ter aquela velha opinião formada sobre tudo, sobre o que é o
amor, sobre que eu nem sei quem sou...
O: Ou mesmo as opiniões sobre o
que é ou não é necessário para a possível mutação psíquica.
F: Sim. Só tem adulteração, só
tem condicionamento. Veja as frases típicas: "Na minha opinião
preciosa", "É assim que as coisas são e como deveriam ser", "É
assim que os outros deveriam ser", "Preocupo-me com o que pode
acontecer se isso acontecer"... Tudo condicionamento, tudo velharia.
O: Entendo.
F: Veja, com o exercício da
observação, estamos queimando tudo, tacando fogo em tudo, compreende? Todas as
ideias que recebemos dos familiares, sobre o que somos e o que não somos, para
onde estamos indo, o que realmente queremos... puts! Tudo isso não dá mais,
caiu por terra. Perder o que não serve mais não é uma perda. Tudo é o imaginal,
é sempre ele que cria o sensorial, e é ele que mantém as inquietantes
manifestações do sensorial.
O: Estendo isso além da família, incluindo
tudo o que vivenciamos, tudo o que colhemos das escolas místicas, dos sistemas de
crença, das programações de anônimos, dos livros que lemos, dos mestres que
cultuamos no passado. Tudo, tudo, não serve mais, pois se tivesse servido, não
teríamos mais a inquietude.
F: Concordo com tudo. Para mim, a
inquietude não termina por conta do imaginal, visto que é ele que a cria e a mantém.
Mesmo que a observação pegue sua criação, algo dela sempre passa, sempre
somatiza. Pode ver.
O: Concordo. Nenhum conceito,
nenhum regra, nenhum sistema, nenhuma programação, nada, nada, nada, no que diz
respeito a transcendência da limitada e condicionada psiquê, serve agora para o
nosso momento. Tudo isso é feito pele de cobra na beira da estrada.
Felipe: Sim, tudo é passado, tudo
isso está contaminado pelos condicionamentos das mentes que permitiram a sua
criação. Como todas as crenças, aquelas crenças que dizem como isso é, como
deveria ser e como isso não é suficiente.
O: Trata-se de um consciente mentecídio
e não de um inconsciente suicídio, mas um mentecídio causado não por alguma
ferramenta, mas, simplesmente, pelo fato da não alimentar a mente com as
antigas e ilusórias identificações reativas. Trata-se de deixar o fluxo do
imaginal e do sensorial, morrer de morte natural.
F: PQP, cara! Bingo! Você vai na
mosca! Caraio, véi! O próprio filme “Revolver” deixa isso bem claro... Todas as
crenças geram mais histórias condicionantes, mais imaginal, mais emoções
intensas e mais inquietação do sensorial, inquietação essa que vêm com essas
histórias que clamam pela nossa atenção, macacos de terno... Cara, isso pode
levar ao surto, quem não está no exercício pleno da observação passiva não
reativa.
O: Quem não está nela, não
entende nada do que queremos dizer com isso, aliás, nem consegue ler dois
parágrafos que seja. Quem não está pronto para isso, como dizem os Titãs, o
acaso protege enquanto estiver distraído.
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