17/02/2021

A observação nos remente ao consciente mentecídio

 

O: Gostaria de aprofundar um pouco mais nessa questão da necessidade de um colapso observado... Já vimos juntos que a observação não tem o poder de causar o findar do fluxo. Vimos também que por meio dela, conseguimos não nos identificar com as imagens e sensações que antigamente nos faziam reagir de modo neurótico, o que adulterava ainda mais a nossa realidade e ainda cristalizava a débil estrutura psíquica.

O: Mas mesmo a observação, não acaba com a sensação, com a inquietude, com o oco, com a solidão ou com qualquer forma de emoção dolorosa. A inquietude, em sua forma de manifestação, vai minando a possibilidade de viver a experiência da vida em sua plenitude criativa e integrativa.

Já conversamos sobre isso, sobre a necessidade de um poder superior à própria observação. Olhando de modo bem científico, descartamos a ideia convencional de um Deus concebido em nosso estado de confusão, e percebemos nos relatos históricos, a impotência e o colapso como fatores determinantes da eclosão de uma significativa mutação psíquica. Vimos também que o exercício da vontade e do esforço pessoal, em todos os casos, se mostraram totalmente ineficazes, até mesmo como poderosas traves de tropeço... "Faço o mal que não quero, mas o bem que quero, não consigo fazer"... "Eu por mim mesmo nada sou".

F: Sim. Mas toda nossa energia é jogada nisso e ficamos no nível do imaginal e do sensorial. Esse, a meu ver, é o ponto que foi ocorrendo e que levou ao colapso anterior e a breve experiencia do estado incondicionado de ser. Naquele momento, eu estava muito mais atento, por exemplo, ao que acontecia ao redor, no ambiente. Isso foi ocorrendo.

O: Sim, mas, veja que chegamos também na percepção de que carecemos de uma libertária lucidez integrativa. Hoje já temos a percepção de fragmentos do falso, mas não a totalidade da realidade.

F: Tudo era como era... não havia extras antes mesmo de ocorrer o lance no carro... era como se estivesse apenas nos sentidos puros sem influência do imaginal. Percebe que gastamos tempo e energia demais no imaginal... Nossa educação e cultura contribui para isso. Como eu disse ontem, o imaginal prega um truque, mesmo com raciocínio mais lógico e apurado, ele cria sensação de que estamos usando-o. De fato, estamos, mas, no fundo, estamos sendo usados por ele. É algo parecido ao uso de drogas: ficamos tão intoxicados, que nem nos damos conta do que acontece ao redor. Vírus, verme, ideia...

O: Continue.

F: Por mais que tentemos ordenar as ideias, usar a lógica, ela é desfeita, aparenta uma lógica no momento, mas na sequência, ela se perde igual fumaça, percebe? Por isso só há a observação que permite ver o truque, o jogo, o funcionamento da estrutura. Vejo que entramos numa percepção mais profunda: a de que não somos nós quem produz o fluxo, e que o fluxo não é para mim. Era a identificação ilusória que dava essa impressão e tornava tudo pessoal. Mas veja por si... Você não faz nada aí para que surja o próximo pensamento, sentimento ou sensação... Você pode até usar a mente, do mesmo modo que usa suas mãos, mas vai dar em nada, pois está tudo consumado. Entrou uma questão mais de perceber que não há controle de nada, nenhuma decisão, nada. A meu ver, tudo isso é ilusão, pelo menos é o que percebo aqui. Não tem escolha a nível profundo dessa situação, já tentamos de tudo... Veja nossa própria rebeldia no passado, a qual foi uma reação a tentativa de não ser condicionado.

O: Sim.

F: Pelo exercício da observação passiva não reativa, a crença na estrutura caiu, esse me parece ser o ponto. Chegou naquela parte do filme “Revolver”, onde o personagem central diz para a própria mente: “Eu não sou você”, “Você não me controla”, essa foi a crença central em torno da qual tudo estava girando antes da observação.

F: Não sou eu quem faço nada, nem mesmo piscar os olhos... veja, ficávamos perdidos nas histórias do imaginal, foram décadas perdido nesses enredos ilusórios; mas não tem nada. Se há algo que possa causar colapso, isso não sei. O que pode trazer mais clareza? Também não sei. Mas, penso que é o próprio imaginal jogando mais, mais e mais. E pelo imaginal, a história continua, não tem fim. Mas com a observação, a crença na história desaparece, cai a crença, do mesmo modo que está caindo a preocupação com a qualidade de manifestação do próprio sensorial.

Toda vez que no momento da observação entra o "se", entramos novamente na identificação com a história e, novamente, mais uma vez uma forma de crença se instala. No fundo é isso que vejo. Nós, humanos, nos adulteramos com os rótulos. E olhe por exemplo, para o mundo da moda, e veja como as marcas, as etiquetas, os logotipos, são tão importantes! A adulteração se cola a outras adulterações, criando castelos elaborados de adulteração.

O: Compreendo.

F: Esses castelos de adulteração é que nos forçam a ter aquela velha opinião formada sobre tudo, sobre o que é o amor, sobre que eu nem sei quem sou...

O: Ou mesmo as opiniões sobre o que é ou não é necessário para a possível mutação psíquica.

F: Sim. Só tem adulteração, só tem condicionamento. Veja as frases típicas: "Na minha opinião preciosa", "É assim que as coisas são e como deveriam ser", "É assim que os outros deveriam ser", "Preocupo-me com o que pode acontecer se isso acontecer"... Tudo condicionamento, tudo velharia.

O: Entendo.

F: Veja, com o exercício da observação, estamos queimando tudo, tacando fogo em tudo, compreende? Todas as ideias que recebemos dos familiares, sobre o que somos e o que não somos, para onde estamos indo, o que realmente queremos... puts! Tudo isso não dá mais, caiu por terra. Perder o que não serve mais não é uma perda. Tudo é o imaginal, é sempre ele que cria o sensorial, e é ele que mantém as inquietantes manifestações do sensorial.

O: Estendo isso além da família, incluindo tudo o que vivenciamos, tudo o que colhemos das escolas místicas, dos sistemas de crença, das programações de anônimos, dos livros que lemos, dos mestres que cultuamos no passado. Tudo, tudo, não serve mais, pois se tivesse servido, não teríamos mais a inquietude.

F: Concordo com tudo. Para mim, a inquietude não termina por conta do imaginal, visto que é ele que a cria e a mantém. Mesmo que a observação pegue sua criação, algo dela sempre passa, sempre somatiza. Pode ver.

O: Concordo. Nenhum conceito, nenhum regra, nenhum sistema, nenhuma programação, nada, nada, nada, no que diz respeito a transcendência da limitada e condicionada psiquê, serve agora para o nosso momento. Tudo isso é feito pele de cobra na beira da estrada.

Felipe: Sim, tudo é passado, tudo isso está contaminado pelos condicionamentos das mentes que permitiram a sua criação. Como todas as crenças, aquelas crenças que dizem como isso é, como deveria ser e como isso não é suficiente.

O: Trata-se de um consciente mentecídio e não de um inconsciente suicídio, mas um mentecídio causado não por alguma ferramenta, mas, simplesmente, pelo fato da não alimentar a mente com as antigas e ilusórias identificações reativas. Trata-se de deixar o fluxo do imaginal e do sensorial, morrer de morte natural.

F: PQP, cara! Bingo! Você vai na mosca! Caraio, véi! O próprio filme “Revolver” deixa isso bem claro... Todas as crenças geram mais histórias condicionantes, mais imaginal, mais emoções intensas e mais inquietação do sensorial, inquietação essa que vêm com essas histórias que clamam pela nossa atenção, macacos de terno... Cara, isso pode levar ao surto, quem não está no exercício pleno da observação passiva não reativa.

O: Quem não está nela, não entende nada do que queremos dizer com isso, aliás, nem consegue ler dois parágrafos que seja. Quem não está pronto para isso, como dizem os Titãs, o acaso protege enquanto estiver distraído.

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