O: Continuemos. Há o conflito, há a
inquietude, os quais partem do imaginal e sensorial e, toda sugestão de solução,
ainda é parte do fluxo do imaginal, sugestão que é condicionada pelo conteúdo do
conhecido. Então, qualquer identificação com a sugestão, não resolve o conflito,
apenas o posterga, lança-o para outras situações e ambientes, além de reforçar a estrutura projetante. Toda sugestão de
futuro é o passado projetado, o qual forma o conflito presente.
F: Todo conteúdo projetado está
sendo imediatamente descartado.
O: O que faz sentido é o
descarte instantâneo da identificação com o conteúdo projetado, isso tem sido
o diferencial aqui. Nesse descarte, além de um certo centramento, há uma
consciência cada vez maior das nuances de funcionamento da estrutura, a percepção
de seu processo formador de imagens, de como ela funciona por meio de imagens e
para sustentar uma imagem de si mesma. Como disse na conversa anterior, isso
aqui vai contra a lógica e a razão estabelecida, pois aqui, ficar com a inquietude,
parece ser a única coisa que vai revelando a o falso da estrutura.
F: Já foi mais árdua a vivência
dessa inquietude crônica.
O: Trata-se de um maduro estar com a inquietude, estar esse que esclarece a estrutura, que é o próprio observador, o próprio ficante. Na medida em que o observador vai enfraquecendo a identificação reativa, sem perceber, vai enfraquecendo a si mesmo, dando lugar a uma quantidade maior de clareza, a qual torna cada vez mais fácil o sentir da inquietude, sem com ela se identificar. Vai ficando cada vez mais rápido e mais fácil o acompanhamento do fluxo, sem qualquer identificação reativa ao mesmo. Vemos que são as imagens projetadas, que impedem a real comunhão, inclusive a imagem que temos do amor e seus imaginados tipos de manifestação.
F: O que falam sobre o amor, não
é amor. Deve ser um algo ali que nada tem a ver com tudo isso que é falado.
O: O que se tem por amor, é tudo
fruto da imatura imaginação condicionada.
F: A impressão que tenho é que
estamos vendo a coisa como é. Foi muita purpurina sobreposta. Quando a gente
olha para a estrutura como um todo, como ela é de fato, conseguimos compreender
essa situação caótica que se apresenta na sociedade, porque o indivíduo que não
despertou para a observação passiva não reativa, ele é aquilo, ele é a identificação
inconsciente com o fluxo mecânico e não solicitado do imaginal condicionado.
Tal individuo vive o tempo todo estressado, sendo cobrado pela própria
estrutura e pela compartilhada estrutura social condicionada, que no fundo, é a
mesma estrutura. Então, tal indivíduo, não tem como sair disso. Então, isso vai
cada vez mais afunilando o individuo em vários tipos de fuga, desde as
socialmente aceitas, como as fugas que são recriminadas; mas nenhuma dessas fugas
resolve a estrutura estressante. Pela observação, já constatamos a futilidade
de tudo isso.
O: Sim, poder, prestígio,
distração, viagens, aquisições, filiações, drogas, crenças, programações,
sistemas, militância...
F: Quando chegamos neste ponto em
que estamos, entramos num outro momento, o qual, por si só, revela a inteligência
do processo de ficar com tudo isso que é projetado do imaginal, e de sentir as
emoções e sensações por ele projetadas, e de olhar para essa estrutura, do
jeito que ela é, sem colocar qualquer purpurina sobre ela.
O: Sim, ver o que é, do jeito que
é, sem tentar maquiar o que é.
F: Aquilo que era terrível, aquele
fundo de poço que atravessamos, até o momento é real, e não sabemos o que nos
espera, vamos dizer assim, pode acontecer qualquer coisa, com o processo do
próprio corpo. Mas o indivíduo que não que não tem a percepção de si mesmo, de
como funciona sua estrutura mental e emocional... Que não tem a capacidade de
ficar com sua inquietude, observá-la e sentí-la do mesmo modo que estamos vendo
tudo isso... Ver a estrutura da inquietude, a sua fonte... Ele se torna a inquietude,
e sai derramando-a em suas relações e atividades. A observação passiva não
reativa faz toda diferença, pois ela nos dá condições de ver as coisas do jeito
que é e de ficar com o que é.
O: É bem por aí.
F: Parece-me que vamos chegando
num ponto muito interessante que é a queda desse interesse, a queda do desejo, dessa
vontade de buscar essa própria realidade incondicionada, porque você cai num paradoxo sem fim,
você cai numa espiral que é a estrutura se condicionando para ter o resgate do
real incondicionado, esse é o buraco em que chega o processo de descondicionamento... A
percepção disso que não é a nossa real natureza incondicionada, querendo a real
natureza incondicionada. Veja que tudo isso são só imagens sobrepostas. Aqui
caímos num xeque-mate. A estrutura que desconhece a realidade, deseja a
realidade, e isso cria um looping infinito que retroalimenta o imaginal. Enquanto
ficar na ação, como autor das coisas, inevitavelmente cairemos nesse mesmo looping, nesse imaturo sobe e
desce sem fim. Tudo que a ilusão pode ver, é o funcionamento dela mesma; fica claro
que só há a observação, que esse é o limite: sentir o que há para sentir.
O: Trata-se do que tenho chamado
de “Contato consciente com o colapso da estrutura”... O se permitir ser “crucificado”
de modo passivo e não reativo. Parece-me que sem esse estado de boa vontade, não pode
haver ressurreição psicológica.
F: Pode ser isso o que dizia tudo
que lemos, que pesquisamos, etc., etc., de ficar diante da porta que se abre por si...
O: Não há nenhum "Abre-te Sésamo".
F: Talvez seja
isso, o mais próximo de tudo, e daqui em diante, não podemos fazer mais nada. O
processo de descondicionamento nos trouxe até aqui, onde sabemos que não temos como abrir
a porta, muito menos o que tem atrás dela. Mas faz sentido, não adianta sofrer,
nem fingir nada. Para mim, chegamos na rendição total, na entrega, algo do tipo,
a palavra não importa. A identificação emotiva caiu muito aqui; há uma
estranheza nisso. Isso é muito forte, parece-me que isso aqui não é todo mundo
que acompanha.
O: Enquanto na total ignorância do
funcionamento real de si mesmo, sem se ver fora da auto imagem, é natural o
indivíduo imaginar que não tem problema, imaginar que ama, entre outras imaginações
mais. Autoconhecimento não é para os fracos. Ver a coisa do jeito que é, não é
para qualquer um. Por isso que a maioria ou fica pelo caminho ou morre na praia.
Quando a gente desperta para o real do nosso hermético “lado B”, é uma benção
não enlouquecer de culpa.
F: Não há mais culpa, não há mais
nada disso, esse momento já passou. O que percebo é que vai caindo o ranço, a acidez que antes havia
fortemente.
O: E tem mais, se você se
aventurou até a metade do processo de descondicionamento, não tem como parar,
se parar, morre na praia da inquietude, ou fica um bobo, enganando a outros
bobos, com chavões espiritualistas. Ver o que é, inicialmente, você sabe bem, leva
quase ao desespero.
F: No início do processo, sim,
mas agora, parece que não mais.
O: Inicialmente, sem ajuda, o indivíduo
não aguenta.
F: Provável que não.
O: Teríamos morrido.
F: Por isso que eu disse que sempre
recebemos ajuda. A ajuda sempre chegou. Esses são os lados ilógicos da coisa,
isso fica fora daquele consciente certinho.
O: Mas agora, a ajuda não ajuda,
só atrapalha. A ajuda condiciona.
F: Veja que ainda há ajuda,
sempre há. Pode não ser claro, mas a própria coisa toca de algum modo mais
sutil, mais simples, de modo diferente. Ainda não sei explicar. Algo do tipo
que você sente que tem algo rolando, mas não tem o que fazer, pois é algo
interno.
O: Não tem ajuda.
F: Recebo ajuda aí na troca de
ideias, na troca de experiências e percepções.
O: Isso só informa, não dá o
poder de desformar a estrutura. Entende? A ajuda, inevitavelmente, condiciona,
sustenta dependência.
F: Isso sim, isso é claro.
O: No ponto em que chegamos, não
há ajuda.
F: Entendi... Acho que nisso,
você está certo.
O: Podemos trocar mais do mesmo,
só mais nuances do funcionamento da estrutura e seus condicionamentos. Só isso,
nada além, nada do incondicionado estado de ser.
F: Ficamos num “não saber”, de
forma muito madura. Não tem nada, esse momento do processo de
descondicionamento, tira até as palavras.
O: Sem dúvidas, bafo de boca não
cozinha ovo. Não há o que fazer. O próprio Krishnamurti deixa esse momento bem
relatado. Veja: “O que você faz quando tem a profunda conscientização de que
o pensamento não pode acabar com ele mesmo? O que acontece? Observe-se. Quando
tem plena consciência desse fato, o que acontece? Você compreende que toda
reação é condicionada e que, por meio do condicionamento, não pode haver
liberdade, nem no início, nem no fim, e liberdade está no começo, não no fim...
Quando você compreende que toda reação é uma forma de condicionamento, o que
dá continuidade ao eu em diferentes maneiras, o que acontece? Você precisa
estar bastante certo a respeito disso”.
F: Forte. Esse é o momento aqui:
percepção que se o fluxo parar, será por si. Essa percepção remove grande carga
de energia que era envolvida na tentativa de transcender tudo isso. Não existe
distinção entre dizer que pensamento crio Deus, ou criou o eu, ou criou a
solução para ele mesmo. Percebe? O que temos agora, é só a observação, mais
nada. Só tem o observar e o sentir de modo passivo e não reativo. Tudo se
resume nisso. O que surge na tela da mente e do corpo, é imediatamente pego sem
qualquer identificação, sem transformar o irreal em real. Tudo é só pensamento
e sentimentos não solicitados, atividades dos sentidos condicionados. Tudo isso
é pego na observação silenciosa.
O: Isso é o que entendo pelo lema
que conhecemos nas salas dos grupos anônimos: "Mantenha o simples", "Não se leve muito a sério".
F: Faz sentido.
O: Esse repassar instantâneo da
observação, de momento a momento, vai fazendo você perder o medo diante do que
ocorre no imaginal e no sensorial, por mais inquietante que seja o conteúdo
manifesto. Você vai ganhando a capacidade de não deixar que o conteúdo do fluxo
controle suas ações; vai perdendo a necessidade neurótica de fugir do que quer
que esteja se manifestando na mente ou nas emoções e sensações. Isso vai criando
condições de ver o que há de falso e de verdadeiro no meio do fluxo, pois o
fluxo também lhe apresenta suas limitações, os aspectos de seus apegos,
dependências e medos. Isso vai dando condições de perceber também a insanidade
do fluxo, sem se identificar, sem se assustar com tal insanidade percebida. Isso soa como um
paradoxo, mas há uma lucidez que vê a insanidade. Você percebe que a projeção
traz tanto a ideia de uma situação a ser enfrentada, bem como a ideia do que você
vai sentir se tal situação ocorrer. Você vê isso e não se identifica, não dá
vida a sensação projetada. Algo diferente do que costumava ocorrer num
passado de inconsciência. Portanto, por mais inquietante que seja, você não
perde mais o controle de si, não reage impulsivamente. Você vai analisando tudo
que se passa, mas percebe também que sua análise, ainda não tem a libertária força
assertiva.
F: Tudo é visto em sua desconexão,
então, só há observação do conteúdo que muda, que é instável, aleatório, volátil,
sem sentido, até mesmo de ser analisado. Ele muda em um segundo, ali são só
jogos de palavras, imagens e sensações contraditórias. As sensações, quando
sentidas e não nomeadas, não têm a mesma intensidade de quando tentávamos entendê-las
ou delas fugir. Parece-me que o lance é perceber que o fluxo não para; se parar, será por si... Veja bem, se parar.
O: Há quem afirme que pare, mas
isso, agora, nada significa para nós; doações psicológicas, incertas certezas
emprestadas, não tem o poder de produzir a mutação psíquica. O imaginal, ao se
ver na possibilidade de que seu fluxo não pare, projeta a ideia de que esse
fluxo mecânico deteriorará a mente, que acabaremos loucos ou com Alzheimer. Ele
tenta sempre instalar a identificação com uma preocupação excessiva consigo
mesmo, algo que é percebido como muito patético.
F: Sim, ele manda mais e mais para que se
instale a adulterante identificação reativa que sustenta sua estrutura
condicionada.
O: Tudo que o imaginal projeta,
vem sempre num enredo de dramaturgia de pânico, de preocupação consigo mesmo, de
caos, de conflito, de carência, de solidão ou de prazer imediato para fugir da
inquietude.
F: Da mesma maneira que ele cria
a ideia de vida eterna, ele cria ideia de que vai morrer. Suas projeções são
insanas. Você percebe que não tem fim para o seu arsenal de truques, e que não há
nada a ser feito, porque, aquele que faz, na verdade, é também uma ilusória criação
do imaginal.
O: Sim, muito volátil. O imaginal
cria o fazedor, cria o reagente.
F: Imaginal criou o fazedor, o pensador, o observador, etc., etc., etc. O grande lance é que foi sempre essa identificação inconsciente que nos deixava toda manhã prostrados na cama, em pânico sob o edredom. Mas agora tudo isso é visto, sem o poder de nos controlar. Cada filme que imaginal projeta, vem carregado de uma emoção diferente. Por exemplo: olhe a projeção da morte... Vem uma sensação junto da mesma... A projeção de que vamos acabar enlouquecendo, vem carregada de outra sensação. Desemprego, desamparo, solidão... Tudo vem carregado de uma sensação.
O: Muito bem, pegue isso, fique
com isso, porque essa percepção é muito importante! Tudo que é projetado pelo
imaginal, traz também a projeção de uma sensação a ser vivida, mas veja, isso
não está ocorrendo de fato, é só mais uma projeção que tem por fim, a
possibilidade de identificação que sustenta a continuidade da estrutura autocentrada.
F: Vem junto, porque é uma única
estrutura, complexa, de pensamentos e sensações.
O: Antes não víamos e caíamos no
truque. Não poderia ser diferente, visto que nunca tivemos uma educação para perceber isso.
F: Não. Inevitavelmente, nos identificávamos
e entrávamos em pânico, ou nos identificávamos com algum tipo de impulso
emotivo reativo, neurótico, insano... Sempre foi uma mistura disso: Pânico, edredom,
droga, calmante, sexo, medo, cama, crença, oração, súplicas, mais cama, mais deprê...
O: Era identificação automática.
F: Triste de quem está nisso,
muito ruim, apesar da observação não ser linda como pintam os ditos mestres...
O: Sempre a projeção não solicitada
da ideia do que fazer e do que seria sentido ao fazer.
F: Exato: faço isso e sentirei
isso.
O: Ou de que se não fizer o que é
imaginado, sentirá algo do tipo. E toda imaginação tem seus fundamentos na
memória do que foi vivido, lido ou adquirido de doações psicológica de
terceiros.
F: Isso.
O: Sempre o passado se movendo
num futuro imaginado. Essa movimentação rouba a beleza e o bem-estar do
instante.
F: Mas essas projeções acontecem
no “presente”; o conteúdo é passado ou futuro, ou abstração total.
O: Elas ocorrem no presente, impedindo
a vivência do presente, fragmenta a percepção do presente instante.
F: Ocorrem no presente, tudo
ocorre nele. Veja a ilusão então dos patéticos mestres, som seus discursos de
métodos para ficar no presente. Mas vamos dizer que isso é o que é, pois toda
tentativa de modificar a coisa como é, gera uma inquietude descomunal.
O: Novamente o imaginal imaginando
como, pela ação do esforço, pela ação de um método, se manter no presente, a
fim de sentir algo diferente.
F: Como se víssemos de fato que a
parte não pode ver o todo.
O: Sempre o imaginal projetando a
ação e o que será sentido por meio da ação, o velho truque de sempre.
F: Não há nada a ser feito: a
ilusão não pode ver o real.
O: É fácil encontrar escritos sobre
a prática do poder do agora, mas não sobre o poder adulterante do fluxo do
imaginal.
F: Sem o choque psíquico, parece-me
que o agora, é só delírio.
O: Se entender o poder do fluxo,
quem sabe, descubra o que é o poder de viver integralmente no agora.
F: Não dá para saber. Parece-me
que só temos o observar. Há essa limitação que sinto aqui. O fluxo não é
controlável. A observação deita por terra toda papagaiada do poder de controlar
a mente, o poder de ficar no agora, de silenciar mente, de alimentar
pensamentos positivos. Parece-me que o lance é ver se é possível olhar para
tudo, do mesmo modo como olhamos para o imaginal... Olhamos cada vez mais para
o imaginal, sem uma ideia formada, sem preconceito, sem opinião pessoal. Olhamos
para ele cada vez mais assim, sendo que o mesmo olhar está ocorrendo agora, no
que diz respeito as emoções, sentimentos e sensações. Isso nunca foi possível
antes, pois não tínhamos a percepção desse mecanismo, não tínhamos conhecimento
da observação passiva não reativa; tínhamos medo de sentir, não permitíamos o sentir,
logo bloqueávamos mentalmente tudo, nos agarrando a algo. Só que agora, cada
vez mais olhamos o imaginal é sensorial no momento de sua projeção. Só isso
pode ser feito e está fazendo toda a diferença. Parece-me que por meio disso,
talvez possa ocorrer com tudo.
O: Sim.
F: É assim que vejo a coisa no
momento, por enquanto. Percebo que a ilusão não pode ver o real e nem parar a
própria ilusão, porque é ilusão. Máximo que temos é observar, sentir, mais nada.
O: Sim, somente deixar ser e
deixar ir, pois tudo ali, como tudo, é impermanente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário