O: Achei muito interessante esse
tema que você levantou: O samba do observador refinado. Percebemos vários
confrades ainda com o samba refinado pela crença, ou mesmo nós com a observação
ainda mais refinada por estar livre das crenças, mesmo a crença advaita. Ambos
estamos literalmente sambando com os cacoetes da estrutura pessoal. A observação
nos deu condições de transcender uma série de cacoetes da estrutura, mas não
nos libertou dela. Não há nada que possamos fazer a esse respeito. O que restou
como possibilidade é uma certa qualidade de silêncio diante da observação dos
barulhos da inquietude, do desassossego. A inquietude de se perceber condicionado
a um corpo, quando se percebeu pela vivência de nosso estado incondicionado de
ser, que aquilo que realmente somos, se encontra além de todo corpo, de toda
forma. O que restou é uma aceitação de impotência total, até mesmo diante do
uso das palavras ou mesmo da prática do silêncio... Não há como condicionar a
ocorrência de algo que nos tire da patética estrutura pessoal e nos devolva àquele
estado singular e impessoal de ser. O processo de descondicionamento impactou
tudo que tínhamos por realidade, tudo que tínhamos por necessário, nos mostrando
nossas compartilhadas ilusões que sempre acabaram e acabam em nada. O processo
também nos mostrou que não há saída da estrutura por qualquer ação que parta da
estrutura; que não há condicionamento que possa nos lançar no estado
incondicionado de ser.
F: Que é exatamente o que estamos
fazendo... Não sai! Estamos como Raul Seixas quando cantava: “Não pense que a
cabeça aguenta se você parar, não, não, não... Há uma voz que canta, uma voz
que dança, uma voz que grita, pairando no ar.
O: Penso que o “princípio da
insanidade” — a qual deu origem a todo insano, obsessivo e compulsivo comportamento
pessoal — deu-se logo na infância, com a identificação corporal que trouxe a
ilusão de sermos uma pessoa distinta de outras pessoas, que fez de nós seres
caçadores do prazer imediato, pelo qual, de modo inconsciente, por décadas
tentamos aliviar a inquietude do estado condicionado de ser.
F: Natural, mecanismos de defesa.
Há um mecanismo intrinsicamente ligado ao corpo, que é o próprio pensamento
protegendo a ideia de que somos o corpo. Mas para mim, a questão não é mais
refletir sobre isso, pois sinto que isso não nos leva a nenhum lugar, só faz
com que fiquemos girando dentro do mesmo âmbito. A questão que surge é: Tudo
bem, e daí? Para que rodar mais e mais aí? Já vimos que todo esse
autoconhecimento vira lixo, acaba sendo incorporado na própria estrutura,
cristalizando-a ainda mais. Podemos conhecer o quanto quisermos a respeito da
estrutura, até mesmo qual foi o que você chamou de “princípio da insanidade”...
Pelo conhecimento da estrutura, o qual como já vimos, é sempre limitado, não
tem como sair da estrutura que é a própria insanidade. O conhecimento vira
sempre masturbação mental. Já vimos, em decorrência da vivência daquele “estado
singular de ser”, que aquilo que somos não está confinado no corpo. Eu, você, e
outros confrades viveram isso, essa coisa que numa linguagem muito chula,
podemos chamar de “saída do corpo”... Sabemos que a identificação corporal é pura
ilusão. Depois dessa vivência, que já não se encontra aqui e agora, como vamos
ficar coçando mais ilusão? Concorda? Vejo claramente que o pensamento prega o truque,
ele cria a ideia de estarmos dentro do corpo, de sermos algo ali, algo além do
próprio pensamento... Mas ainda é pensamento. É ele que cria essa sensação de
estar aí em algum canto dentro do corpo. Se eu não tivesse visto vivido a coisa
até poderia continuar acreditando, mas na real, não é assim. Na real não tem nada
dentro... Não conseguimos sair para aquele estado, mesmo querendo isso, estamos
fortalecendo a estrutura, a pessoa, o ego, chame como for. O nome que se dane! A
estrutura pegou a própria observação. O lance de ficar na observação, também
nos mantém presos em nós mesmos. A estrutura pegou tudo, cara! Não sobrou nada!
Por isso falei: tudo está consumado! Se der para relaxar, melhor. Quem sabe se
relaxar disso tudo, algo aconteça. Única coisa diferente.
O: Não foi o pensamento que me
mostrou que não estou confinado ao corpo. Quando você coloca a questão do
relaxamento quanto a tudo isso, é o mesmo que dizer que aquele está incondicionado
de ser — onde não estamos nem condicionados pelo corpo — poderia ser
condicionado pela prática do relaxamento.
F: Não afirmei, apenas disse: “Quem
sabe?”
O: No momento tenho a clara
percepção de que estamos presos numa Matrix, vivendo por realidade, aquilo que
não é real: um estado pessoalizado e separatista de ser, onde tudo é percebido
sem sentido, tudo sentido como patético, imaturo superficial demais. É algo
muito semelhante quando você está tendo um pesadelo, consciente de que é um pesadelo,
mas que não consegue dele sair. Chegamos num ponto em que nenhuma explicação,
seja de terceiros ou pessoal, é percebida como infrutífera, sem sentido. Exemplo
disso: quando estávamos em anônimos, as explicações que recebemos lá, pareciam
reais, válidas, no entanto, com o maturar da observação, se mostraram
ilusórias. O mesmo ocorre aqui. Nada mais do que nos disseram ser necessário
para o alcance da restauração da sanidade, hoje se mostra com sentido, nem
mesmo a ideia de se colocar num estado de total silêncio.
F: É bem isso que estou tentando
dizer; estamos muito parecidos com aqueles velhos dos grupos de anônimos. Estou
apenas sendo sincero.
O: Prece, meditação, silêncio,
ação ou inação, esforço para tentar compreender, busca de um contato consciente
com Deus ou com algum ser de outra dimensão, ou com alguma entidade da
natureza, o desejo de um insight libertário, nada disso agora se mostra com sentido.
F: Esquece! Tudo que dissermos
aqui, é o mesmo que as partilhas dos “partilhados” membros antigos de anônimos.
A observação pegou isso que estamos fazendo neste mesmo instante. Pegou tudo:
pegou a própria observação, a escrita sobre o que é observado, a tentativa de troca
ou de não mais trocar... Tudo, tudo, tudo!
O: Concordo, nada mais está
escapando dela.
F: Aquilo não pode ser achado. E
agora?
O: Sim, o incondicionado estado
de ser não pode ser condicionado por nada. A única opção que temos é a
aceitação do que é. Qualquer ação da estrutura, parte da inquietação da
estrutura e só alimenta tal inquietação.
F: Pior que nem é tanto questão
de aceitar... Tem hora que não aceitamos, mas continua sendo isso e ponto.
O: Não se trata de aceitar,
porque se fosse o aceitar, aquilo poderia ser condicionado pela aceitação que é
mero cálculo.
F: A própria ideia de “aceitação”,
ainda é a estrutura, mais um truque. Mas não dá para fazer nada esperando
aquilo, portanto, a questão não pode ser aquilo. Daqui não parece ter um
caminho naquilo.
O: a questão é que não tem mais
questão nenhuma, pois nenhuma questão leva na resposta que leve aquilo. Se
tivesse, o incondicionado seria condicionado pela questão.
F: Isso. Se for pensar naquilo
como um algo a alcançar, lascou.
O: Pode pensar de qualquer jeito
que continua lascado.
F: Isso. Então se aquele “estado
incondicionado de ser”, aqui for a meta, continuamos lascados.
O: Veja aonde chegamos!
F: E existe o risco daquele
estado não vir?
O: Essa é mais uma questão sem
sentido algum. Qualquer questão não responde, não transcende.
F: Por isso que falei sobre o
fato de que estamos é apenas ajuntar mais e mais sobre nada. Vimos tudo, vimos
até aquilo, ainda que de modo breve. Aqui chega essa compreensão.
O: Talvez seja essa a simbologia
que os cristãos tentaram mostrar com a história da construção da "Torre de
Babel". No fim, toda palavra é só ranço da estrutura confusa.
F: Com certeza! A palavra se
mostrou o miolo da estrutura. Sou eu, você, ele, tudo... Tudo é palavra.
O: Francisco de Assis, costumava
dizer: "Palavras" Houve um tempo em que eu me iludia com
palavras!" Eu digo que houve um tempo em que eu me iludia com práticas
calculadas, com o contato com a natureza ou lugares tidos por místicos ou
sagrados, lugares afastados dos grandes centros... Essa crença durou até que
tive a grande experiência, bem no centro da cidade mais agitada da América
Latina.
F: Paradoxal. Fui absorvido por
aquele estado singular, dirigindo o carro na autopista a 100 km por hora.
Bizarro! Palavreamos o que sentimos, o que vemos e ouvimos; usamos a palavra ao
invés de simplesmente ficarmos com o que é. E usamos da imaginação para perceber,
o que se mostra imaturo demais. No fundo, somos adictos em traduções, palavras
e explicações. Ouvimos palavras e não o som. Degustamos palavras e não o gosto.
Sentimos palavras e não as sensações. Vemos palavras e não a coisa. Cheiramos
palavras e não o cheiro em si. Aqui é o limite! Daqui em diante, só mais palavras,
explicações, etc.
A observação pegou a própria
observação e os cacoetes que dela surgiram. A percepção pegou que tudo agora
faz parte da estrutura que “busca se libertar da estrutura”. Ela pegou que
qualquer coisa que tentarmos para sair dela, apenas a fortalece ainda mais. Estou
acompanhado você, cara, até aqui!
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