08/01/2022

Somos adictos em traduções, palavras e explicações

 

O: Achei muito interessante esse tema que você levantou: O samba do observador refinado. Percebemos vários confrades ainda com o samba refinado pela crença, ou mesmo nós com a observação ainda mais refinada por estar livre das crenças, mesmo a crença advaita. Ambos estamos literalmente sambando com os cacoetes da estrutura pessoal. A observação nos deu condições de transcender uma série de cacoetes da estrutura, mas não nos libertou dela. Não há nada que possamos fazer a esse respeito. O que restou como possibilidade é uma certa qualidade de silêncio diante da observação dos barulhos da inquietude, do desassossego. A inquietude de se perceber condicionado a um corpo, quando se percebeu pela vivência de nosso estado incondicionado de ser, que aquilo que realmente somos, se encontra além de todo corpo, de toda forma. O que restou é uma aceitação de impotência total, até mesmo diante do uso das palavras ou mesmo da prática do silêncio... Não há como condicionar a ocorrência de algo que nos tire da patética estrutura pessoal e nos devolva àquele estado singular e impessoal de ser. O processo de descondicionamento impactou tudo que tínhamos por realidade, tudo que tínhamos por necessário, nos mostrando nossas compartilhadas ilusões que sempre acabaram e acabam em nada. O processo também nos mostrou que não há saída da estrutura por qualquer ação que parta da estrutura; que não há condicionamento que possa nos lançar no estado incondicionado de ser.

F: Que é exatamente o que estamos fazendo... Não sai! Estamos como Raul Seixas quando cantava: “Não pense que a cabeça aguenta se você parar, não, não, não... Há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que grita, pairando no ar.

O: Penso que o “princípio da insanidade” — a qual deu origem a todo insano, obsessivo e compulsivo comportamento pessoal — deu-se logo na infância, com a identificação corporal que trouxe a ilusão de sermos uma pessoa distinta de outras pessoas, que fez de nós seres caçadores do prazer imediato, pelo qual, de modo inconsciente, por décadas tentamos aliviar a inquietude do estado condicionado de ser.

F: Natural, mecanismos de defesa. Há um mecanismo intrinsicamente ligado ao corpo, que é o próprio pensamento protegendo a ideia de que somos o corpo. Mas para mim, a questão não é mais refletir sobre isso, pois sinto que isso não nos leva a nenhum lugar, só faz com que fiquemos girando dentro do mesmo âmbito. A questão que surge é: Tudo bem, e daí? Para que rodar mais e mais aí? Já vimos que todo esse autoconhecimento vira lixo, acaba sendo incorporado na própria estrutura, cristalizando-a ainda mais. Podemos conhecer o quanto quisermos a respeito da estrutura, até mesmo qual foi o que você chamou de “princípio da insanidade”... Pelo conhecimento da estrutura, o qual como já vimos, é sempre limitado, não tem como sair da estrutura que é a própria insanidade. O conhecimento vira sempre masturbação mental. Já vimos, em decorrência da vivência daquele “estado singular de ser”, que aquilo que somos não está confinado no corpo. Eu, você, e outros confrades viveram isso, essa coisa que numa linguagem muito chula, podemos chamar de “saída do corpo”... Sabemos que a identificação corporal é pura ilusão. Depois dessa vivência, que já não se encontra aqui e agora, como vamos ficar coçando mais ilusão? Concorda? Vejo claramente que o pensamento prega o truque, ele cria a ideia de estarmos dentro do corpo, de sermos algo ali, algo além do próprio pensamento... Mas ainda é pensamento. É ele que cria essa sensação de estar aí em algum canto dentro do corpo. Se eu não tivesse visto vivido a coisa até poderia continuar acreditando, mas na real, não é assim. Na real não tem nada dentro... Não conseguimos sair para aquele estado, mesmo querendo isso, estamos fortalecendo a estrutura, a pessoa, o ego, chame como for. O nome que se dane! A estrutura pegou a própria observação. O lance de ficar na observação, também nos mantém presos em nós mesmos. A estrutura pegou tudo, cara! Não sobrou nada! Por isso falei: tudo está consumado! Se der para relaxar, melhor. Quem sabe se relaxar disso tudo, algo aconteça. Única coisa diferente.

O: Não foi o pensamento que me mostrou que não estou confinado ao corpo. Quando você coloca a questão do relaxamento quanto a tudo isso, é o mesmo que dizer que aquele está incondicionado de ser — onde não estamos nem condicionados pelo corpo — poderia ser condicionado pela prática do relaxamento.

F: Não afirmei, apenas disse: “Quem sabe?”

O: No momento tenho a clara percepção de que estamos presos numa Matrix, vivendo por realidade, aquilo que não é real: um estado pessoalizado e separatista de ser, onde tudo é percebido sem sentido, tudo sentido como patético, imaturo superficial demais. É algo muito semelhante quando você está tendo um pesadelo, consciente de que é um pesadelo, mas que não consegue dele sair. Chegamos num ponto em que nenhuma explicação, seja de terceiros ou pessoal, é percebida como infrutífera, sem sentido. Exemplo disso: quando estávamos em anônimos, as explicações que recebemos lá, pareciam reais, válidas, no entanto, com o maturar da observação, se mostraram ilusórias. O mesmo ocorre aqui. Nada mais do que nos disseram ser necessário para o alcance da restauração da sanidade, hoje se mostra com sentido, nem mesmo a ideia de se colocar num estado de total silêncio.

F: É bem isso que estou tentando dizer; estamos muito parecidos com aqueles velhos dos grupos de anônimos. Estou apenas sendo sincero.

O: Prece, meditação, silêncio, ação ou inação, esforço para tentar compreender, busca de um contato consciente com Deus ou com algum ser de outra dimensão, ou com alguma entidade da natureza, o desejo de um insight libertário, nada disso agora se mostra com sentido.

F: Esquece! Tudo que dissermos aqui, é o mesmo que as partilhas dos “partilhados” membros antigos de anônimos. A observação pegou isso que estamos fazendo neste mesmo instante. Pegou tudo: pegou a própria observação, a escrita sobre o que é observado, a tentativa de troca ou de não mais trocar... Tudo, tudo, tudo!

O: Concordo, nada mais está escapando dela.

F: Aquilo não pode ser achado. E agora?

O: Sim, o incondicionado estado de ser não pode ser condicionado por nada. A única opção que temos é a aceitação do que é. Qualquer ação da estrutura, parte da inquietação da estrutura e só alimenta tal inquietação.

F: Pior que nem é tanto questão de aceitar... Tem hora que não aceitamos, mas continua sendo isso e ponto.

O: Não se trata de aceitar, porque se fosse o aceitar, aquilo poderia ser condicionado pela aceitação que é mero cálculo.

F: A própria ideia de “aceitação”, ainda é a estrutura, mais um truque. Mas não dá para fazer nada esperando aquilo, portanto, a questão não pode ser aquilo. Daqui não parece ter um caminho  naquilo.

O: a questão é que não tem mais questão nenhuma, pois nenhuma questão leva na resposta que leve aquilo. Se tivesse, o incondicionado seria condicionado pela questão.

F: Isso. Se for pensar naquilo como um algo a alcançar, lascou.

O: Pode pensar de qualquer jeito que continua lascado.

F: Isso. Então se aquele “estado incondicionado de ser”, aqui for a meta, continuamos lascados.

O: Veja aonde chegamos!

F: E existe o risco daquele estado não vir?

O: Essa é mais uma questão sem sentido algum. Qualquer questão não responde, não transcende.

F: Por isso que falei sobre o fato de que estamos é apenas ajuntar mais e mais sobre nada. Vimos tudo, vimos até aquilo, ainda que de modo breve. Aqui chega essa compreensão.

O: Talvez seja essa a simbologia que os cristãos tentaram mostrar com a história da construção da "Torre de Babel". No fim, toda palavra é só ranço da estrutura confusa.

F: Com certeza! A palavra se mostrou o miolo da estrutura. Sou eu, você, ele, tudo... Tudo é palavra.

O: Francisco de Assis, costumava dizer: "Palavras" Houve um tempo em que eu me iludia com palavras!" Eu digo que houve um tempo em que eu me iludia com práticas calculadas, com o contato com a natureza ou lugares tidos por místicos ou sagrados, lugares afastados dos grandes centros... Essa crença durou até que tive a grande experiência, bem no centro da cidade mais agitada da América Latina.

F: Paradoxal. Fui absorvido por aquele estado singular, dirigindo o carro na autopista a 100 km por hora. Bizarro! Palavreamos o que sentimos, o que vemos e ouvimos; usamos a palavra ao invés de simplesmente ficarmos com o que é. E usamos da imaginação para perceber, o que se mostra imaturo demais. No fundo, somos adictos em traduções, palavras e explicações. Ouvimos palavras e não o som. Degustamos palavras e não o gosto. Sentimos palavras e não as sensações. Vemos palavras e não a coisa. Cheiramos palavras e não o cheiro em si. Aqui é o limite! Daqui em diante, só mais palavras, explicações, etc.

A observação pegou a própria observação e os cacoetes que dela surgiram. A percepção pegou que tudo agora faz parte da estrutura que “busca se libertar da estrutura”. Ela pegou que qualquer coisa que tentarmos para sair dela, apenas a fortalece ainda mais. Estou acompanhado você, cara, até aqui!

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