08/01/2022

A espera da sanidade: um truque refinado do pensamento?

 F: A percepção de tudo que temos conversado até aqui, chega a dar ânsia.

O: Um consciente estado de impotência e inquietude. Uma total falta de sentido, arrancou mesmo a agulha de nossa bússola, ficamos sem norte, não temos onde repousar nossa cabeça. Ainda mais depois daquela vivência em que a tridimensionalidade que é tida por real, se mostrou uma ilusão de ótica. Vivemos uma dimensão que não tem como ser dimensionada, o que deixou tudo isso ainda mais limitado. Aquela vivência produziu, ainda que brevemente, uma alquimia na qualidade do observador, uma mutação dimensional. Aquilo nos levou muito além de nossa limitada, confusa, insegura e contraditória consciência. Tornou como que zero, o que tínhamos por verdade em nossa consciência. Mostrou o conteúdo de nossa consciência como pura vaidade. Naquele estado de ser, vivido brevemente, não havia tempo, memória ou conceito, não havia nem mesmo palavras. Tudo isso surgiu novamente, quando do fim da percepção daquele estado (se é que podemos chamar aquilo de estado e que o mesmo possa ser percebido, o que apontaria a dualidade percebedor e coisa percebida). Naquilo não havia nem percebedor nem coisa percebida, tudo era uma coisa só. Corpo, tempo, espaço, memória, eu, pessoas... tudo percebido como ilusões de percepção. Ali, literalmente, a limitada consciência desapareceu. Podemos dizer até mesmo que fomos além da dualidade mental-emocional. No fim da identificação corporal, deu-se conjuntamente o fim do medo, o que nos faz crer que o medo, surgiu conjuntamente com a ilusória identificação corporal. A criança só passa a demonstrar a presença do medo quando se vê afastada de seus pais ou do ambiente que lhe é conhecido.

F: Nosso uso do pensamento nos tornou insensíveis ao que nos cerca; só pensamos, não nos damos conta de nada mais, nem ouvimos um pássaro, nada. Só usamos o pensamento como meio de viver, de ver e, quanto mais o usamos, mais insensíveis nos tornamos; isso é óbvio. No fundo, não está rolando nada do que se passa na mente, tudo pode ser percebido como conjecturas, tudo falação, palavra cruzadas que impedem que fiquemos no simples, pois o pensamento sempre entra aí com suas complexidades. O pensamento entra para ver, a mente condicionada a pensar, pensar, refletir, entender... Barca furada, cara. Foram 41 anos nessa barca. Insensibilidade total... Nunca foi tão óbvio!

O: Quanto mais avançamos nesse processo de observação e descondicionamento, mais vamos sentindo o impulso para deixar de falar sobre isso tudo; porque vemos que as palavras não fazem sentido em relação a isso.

F: Não sei se é isso não, cara. Parece que vamos vendo que cada um tem um modo de perceber isso, as palavras não fazem porque elas tornam ou tentam tornar fixo algo que não é.

O: Sim, e que cada um está envolto em sua própria ilusão de percepção da realidade.

F: Não acho que é isso.

O: A pessoalidade, com seus achismos, está ali, deturpando a visão.

F: Minha percepção está adulterada e a sua também, assim como dos demais.

O: Já disse que cada um de nós está apegado em sua própria ilusão de percepção.

F: Se percepção que nosso instrumento de percepção se encontra adulterado, como vamos seguir? Não há percepção real, pois o instrumento está adulterado; vemos palavras e não a coisa. Mais simples ainda: não tocamos, nem os sentidos básicos permanecemos neles, a palavra já entra limitando a percepção.

O: A estrutura se apega em tudo que foi percebido pelo confuso observador afiado, que passa a defender aquilo a que se apegou e com isso, cessa o movimento de investigação, o que torna sem sentido qualquer possibilidade de troca. Isso é que venho percebendo há anos. Mas o impulso para deixar de falar, nem é por isso, mas sim, por perceber a infantilidade desse movimento, no que diz respeito a descoberta se é possível ou não a transcendência dessa limitada, confusa e insegura estrutura.

F: Não é isso, só notamos a impermanência, o estado passante de tudo, dentro e fora, mesmo não tendo distinção. Estamos envelhecendo, tudo está. Ponto.

O: É inevitável que isso ocorra... a estrutura é competidora por si e separatista, veja que você até fecha a coisa colocando a palavra “ponto”.

F: Mas ela é isso, não tem como. Não tem nada, nem certo ou errado, não tem porra nenhuma, quando se chega aqui, tudo escorre pelas mãos; pode colocar o cimento da palavra que quiser, com a observação, até ele racha.

O: Por isso que a palavra vai se mostrando sem sentido, o impulso para se recolher de vez. Vamos caminhando juntos até que a estrutura se cristalize em seus limitados pontos de vista, então a comunicação vai se tornando quase que impossível, mesmo com aqueles que nos afinamos mais.

F: Não sei se é possível transcender... parece ser ficar com isso aqui que a gente não aguenta. Bem possível que a comunicação se torne impossível, vamos indo, isso acontece em tudo.

O: Claro, ela está em tudo.

F: Ela está sempre defendendo ideias, achismos, imbecilidades, opiniões, frases, palavras, um monte de nada, só vento. Mas porque entramos aí? Porque não aguentamos... Foda, veio! Isso aqui não está lá.

O: Vamos usar as palavras como usamos a droga, até chegar no seu fundo de poço, até ver que não dá mais.

F: Mas estamos esperando algo, não vai dar em nada, sempre barganhando. Queremos a iluminação, queremos aquele estado singular, não tem chorumela. Quando estivemos naquilo, essa estrutura não estava, só que depois, voltamos para ela. A própria indústria espiritual pegou o jogo: Compra passagem para o Nepal e vai lá sentar no colo do puro ser.

O: Sim, vai lá se sentar na montanha sagrada e pisar na terra que o santo pisou!

F: A coisa é passante em tudo... tudo que usamos para eternizar algo que foi bom e agradável. Estamos constantemente colocando um véu de ignorância sobre nós mesmos. Queremos o gozo eterno, a satisfação pura, não agora, mas para sempre, de agora até o fim. Imaturo demais!

O: Afirmar não ser possível, me parece mais imaturo ainda, visto que tanto um como no outro ainda está se norteando pela base de tempo. Algo semelhante a uma criança que desconhece o gozo e afirmar que não existe o mesmo.

F: Vamos contra então ao que é: Estamos buscando aquilo? Essa é a pergunta. A mente pregou um truque: Aquilo existe, mas agora está tudo no campo do imaginal, no terreno da memória. O truque é claro demais. Eu falo do desejo, da busca, do querer aquilo, desse movimento que só causa mais inquietude e a solução imaginária é aquilo... Se aquilo vir e ficar... Mas não vejo o que estou fazendo no meu cérebro querendo aquilo. Aqui está claro isso. Não questiono a existência daquilo, ou mesmo que aquilo possa chegar e ficar ou que não fique nada. Isso ninguém sabe. Só estou questionando o movimento mental, que é tosco.

O: Aqui ninguém está buscando aquilo. Estamos carecas de saber que essa busca é ilusão. Apenas temos tentado deixar pegadas por meio de áudios ou textos, que apontam para o conhecimento do mecanismo da estrutura. Só isso. Foi isso que nos deu a capacidade de autonomia psicológica que temos hoje, a qual nos dá condições de não reagir de modo neurótico ao que pensamos e sentimos, nos dá condições também de não fugir ao que está sendo sentido. Não há mais busca, mas há uma esperança de que algo ocorra, isso sim, e não vejo problemas nessa esperança. Vejo um certo sentido no movimento que foi feito até aqui, pois estamos falando sobre o funcionamento da estrutura, de um modo que, pelo menos eu, não tinha visto antes. Isso pelo menos funcionou para vários confrades, como exemplo, você.

Estamos exatamente como no momento de anônimos quanto a saturação com o conhecido, a percepção de sua limitação. Lá também esperávamos pela descoberta de algo. Mas esse algo era esperado no externo, o que já não é a realidade de hoje.

F: Mas sinto que estamos em looping ainda…

O: Veja que você mesmo espera sair do looping.

F: Não.

O: Está bom! Então parça, o que você está fazendo aqui comigo? Some!

F: Eu falei que não sai, cara. Aqui isso está claro, rodamos na mesma.

O: Você espera sair do looping ou não?

F: Não sai.

O: Não perguntei se não sai, perguntei se você não espera isso.

F: Eu sou o looping, portanto, só milagre.

O: Não espera o milagre?

F: Cadê ele agora?

O: Não espera o milagre?

F: Não tem agora.

O: Responda com sim ou não, sem rodeios.

F: Cara, isso é truque. Sinto dizer, mas vejo isso aqui. Posso estar tapado. Aquilo existe, mas esperar aquilo e esperar que fique... Rapaz, minha mente foi longe demais... Esperar aquilo pode ser um truque refinado do pensamento. Cara, estou tapado, mas para mim é outra ideia.

O: Sua mente foi longe demais, mas não consegue ir perto demais para dar uma simples resposta. Não responde esperar o milagre, mas usa a expressão "só um milagre".

F: Isso, ok. Não muda nada.

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