F: A percepção de tudo que temos conversado até aqui, chega a dar ânsia.
O: Um consciente estado de
impotência e inquietude. Uma total falta de sentido, arrancou mesmo a agulha de
nossa bússola, ficamos sem norte, não temos onde repousar nossa cabeça. Ainda
mais depois daquela vivência em que a tridimensionalidade que é tida por real,
se mostrou uma ilusão de ótica. Vivemos uma dimensão que não tem como ser
dimensionada, o que deixou tudo isso ainda mais limitado. Aquela vivência
produziu, ainda que brevemente, uma alquimia na qualidade do observador, uma
mutação dimensional. Aquilo nos levou muito além de nossa limitada, confusa,
insegura e contraditória consciência. Tornou como que zero, o que tínhamos por
verdade em nossa consciência. Mostrou o conteúdo de nossa consciência como pura
vaidade. Naquele estado de ser, vivido brevemente, não havia tempo, memória ou
conceito, não havia nem mesmo palavras. Tudo isso surgiu novamente, quando do
fim da percepção daquele estado (se é que podemos chamar aquilo de estado e que
o mesmo possa ser percebido, o que apontaria a dualidade percebedor e coisa
percebida). Naquilo não havia nem percebedor nem coisa percebida, tudo era uma
coisa só. Corpo, tempo, espaço, memória, eu, pessoas... tudo percebido como
ilusões de percepção. Ali, literalmente, a limitada consciência desapareceu.
Podemos dizer até mesmo que fomos além da dualidade mental-emocional. No fim da
identificação corporal, deu-se conjuntamente o fim do medo, o que nos faz crer
que o medo, surgiu conjuntamente com a ilusória identificação corporal. A
criança só passa a demonstrar a presença do medo quando se vê afastada de seus
pais ou do ambiente que lhe é conhecido.
F: Nosso uso do pensamento nos
tornou insensíveis ao que nos cerca; só pensamos, não nos damos conta de nada
mais, nem ouvimos um pássaro, nada. Só usamos o pensamento como meio de viver,
de ver e, quanto mais o usamos, mais insensíveis nos tornamos; isso é óbvio. No
fundo, não está rolando nada do que se passa na mente, tudo pode ser percebido
como conjecturas, tudo falação, palavra cruzadas que impedem que fiquemos no
simples, pois o pensamento sempre entra aí com suas complexidades. O pensamento
entra para ver, a mente condicionada a pensar, pensar, refletir, entender...
Barca furada, cara. Foram 41 anos nessa barca. Insensibilidade total... Nunca
foi tão óbvio!
O: Quanto mais avançamos nesse
processo de observação e descondicionamento, mais vamos sentindo o impulso para
deixar de falar sobre isso tudo; porque vemos que as palavras não fazem sentido
em relação a isso.
F: Não sei se é isso não, cara. Parece
que vamos vendo que cada um tem um modo de perceber isso, as palavras não fazem
porque elas tornam ou tentam tornar fixo algo que não é.
O: Sim, e que cada um está envolto
em sua própria ilusão de percepção da realidade.
F: Não acho que é isso.
O: A pessoalidade, com seus
achismos, está ali, deturpando a visão.
F: Minha percepção está adulterada
e a sua também, assim como dos demais.
O: Já disse que cada um de nós está
apegado em sua própria ilusão de percepção.
F: Se percepção que nosso
instrumento de percepção se encontra adulterado, como vamos seguir? Não há
percepção real, pois o instrumento está adulterado; vemos palavras e não a
coisa. Mais simples ainda: não tocamos, nem os sentidos básicos permanecemos
neles, a palavra já entra limitando a percepção.
O: A estrutura se apega em tudo
que foi percebido pelo confuso observador afiado, que passa a defender aquilo a
que se apegou e com isso, cessa o movimento de investigação, o que torna sem
sentido qualquer possibilidade de troca. Isso é que venho percebendo há anos. Mas
o impulso para deixar de falar, nem é por isso, mas sim, por perceber a
infantilidade desse movimento, no que diz respeito a descoberta se é possível
ou não a transcendência dessa limitada, confusa e insegura estrutura.
F: Não é isso, só notamos a impermanência,
o estado passante de tudo, dentro e fora, mesmo não tendo distinção. Estamos
envelhecendo, tudo está. Ponto.
O: É inevitável que isso
ocorra... a estrutura é competidora por si e separatista, veja que você até
fecha a coisa colocando a palavra “ponto”.
F: Mas ela é isso, não tem como. Não
tem nada, nem certo ou errado, não tem porra nenhuma, quando se chega aqui, tudo
escorre pelas mãos; pode colocar o cimento da palavra que quiser, com a
observação, até ele racha.
O: Por isso que a palavra vai se
mostrando sem sentido, o impulso para se recolher de vez. Vamos caminhando
juntos até que a estrutura se cristalize em seus limitados pontos de vista, então
a comunicação vai se tornando quase que impossível, mesmo com aqueles que nos
afinamos mais.
F: Não sei se é possível transcender...
parece ser ficar com isso aqui que a gente não aguenta. Bem possível que a
comunicação se torne impossível, vamos indo, isso acontece em tudo.
O: Claro, ela está em tudo.
F: Ela está sempre defendendo
ideias, achismos, imbecilidades, opiniões, frases, palavras, um monte de nada,
só vento. Mas porque entramos aí? Porque não aguentamos... Foda, veio! Isso
aqui não está lá.
O: Vamos usar as palavras como
usamos a droga, até chegar no seu fundo de poço, até ver que não dá mais.
F: Mas estamos esperando algo, não
vai dar em nada, sempre barganhando. Queremos a iluminação, queremos aquele
estado singular, não tem chorumela. Quando estivemos naquilo, essa estrutura não
estava, só que depois, voltamos para ela. A própria indústria espiritual pegou
o jogo: Compra passagem para o Nepal e vai lá sentar no colo do puro ser.
O: Sim, vai lá se sentar na
montanha sagrada e pisar na terra que o santo pisou!
F: A coisa é passante em tudo... tudo
que usamos para eternizar algo que foi bom e agradável. Estamos constantemente
colocando um véu de ignorância sobre nós mesmos. Queremos o gozo eterno, a satisfação
pura, não agora, mas para sempre, de agora até o fim. Imaturo demais!
O: Afirmar não ser possível, me
parece mais imaturo ainda, visto que tanto um como no outro ainda está se
norteando pela base de tempo. Algo semelhante a uma criança que desconhece o
gozo e afirmar que não existe o mesmo.
F: Vamos contra então ao que é: Estamos
buscando aquilo? Essa é a pergunta. A mente pregou um truque: Aquilo existe, mas
agora está tudo no campo do imaginal, no terreno da memória. O truque é claro
demais. Eu falo do desejo, da busca, do querer aquilo, desse movimento que só causa
mais inquietude e a solução imaginária é aquilo... Se aquilo vir e ficar... Mas
não vejo o que estou fazendo no meu cérebro querendo aquilo. Aqui está claro
isso. Não questiono a existência daquilo, ou mesmo que aquilo possa chegar e
ficar ou que não fique nada. Isso ninguém sabe. Só estou questionando o
movimento mental, que é tosco.
O: Aqui ninguém está buscando
aquilo. Estamos carecas de saber que essa busca é ilusão. Apenas temos tentado
deixar pegadas por meio de áudios ou textos, que apontam para o conhecimento do
mecanismo da estrutura. Só isso. Foi isso que nos deu a capacidade de autonomia
psicológica que temos hoje, a qual nos dá condições de não reagir de modo
neurótico ao que pensamos e sentimos, nos dá condições também de não fugir ao
que está sendo sentido. Não há mais busca, mas há uma esperança de que algo
ocorra, isso sim, e não vejo problemas nessa esperança. Vejo um certo sentido
no movimento que foi feito até aqui, pois estamos falando sobre o funcionamento
da estrutura, de um modo que, pelo menos eu, não tinha visto antes. Isso pelo
menos funcionou para vários confrades, como exemplo, você.
Estamos exatamente como no
momento de anônimos quanto a saturação com o conhecido, a percepção de sua
limitação. Lá também esperávamos pela descoberta de algo. Mas esse algo era
esperado no externo, o que já não é a realidade de hoje.
F: Mas sinto que estamos em
looping ainda…
O: Veja que você mesmo espera
sair do looping.
F: Não.
O: Está bom! Então parça, o que você
está fazendo aqui comigo? Some!
F: Eu falei que não sai, cara. Aqui
isso está claro, rodamos na mesma.
O: Você espera sair do looping ou
não?
F: Não sai.
O: Não perguntei se não sai,
perguntei se você não espera isso.
F: Eu sou o looping, portanto, só
milagre.
O: Não espera o milagre?
F: Cadê ele agora?
O: Não espera o milagre?
F: Não tem agora.
O: Responda com sim ou não, sem
rodeios.
F: Cara, isso é truque. Sinto
dizer, mas vejo isso aqui. Posso estar tapado. Aquilo existe, mas esperar
aquilo e esperar que fique... Rapaz, minha mente foi longe demais... Esperar
aquilo pode ser um truque refinado do pensamento. Cara, estou tapado, mas para
mim é outra ideia.
O: Sua mente foi longe demais,
mas não consegue ir perto demais para dar uma simples resposta. Não responde
esperar o milagre, mas usa a expressão "só um milagre".
F: Isso, ok. Não muda nada.
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