08/01/2022

O samba do observador refinado

 

O: Não tem como levar a sério, nem mesmo o sensorial, pois o mesmo foi percebido como passante e contraditório. Essa estrutura, tanto no imaginal como no sensorial, funciona de modo dual... funciona numa fogueira de opostos. Antes não percebíamos isso e nos identificávamos com os polos de dualidade; hoje eles são percebidos e sentidos de modo passivo e não reativo. Quando a estrutura percebe esse só observar sem reação, ela reage jogando a ideia de que não estamos vivendo a vida de fato. Se você se prende nisso, dá-lhe mais e mais inquietude. A observação nos mostrou que esse é um looping sem saída; pode correr para onde for, o mecanismo permanece o mesmo. A observação pega a total ausência de conexão e a estrutura lança a exigência de conexão. Em algum lugar do passado, perdemos essa conexão e agora, fica essa ânsia pela possibilidade de restauração desse estado de conexão, principalmente para quem teve uma vivência, ainda que breve, daquele estado impessoal, onde não existe um eu, um personagem isolado de outros personagens. Esperamos que alguma ocorrência possa nos devolver a sanidade. Permanece a percepção da total incapacidade de perceber e sentir graça real em tudo que se manifesta ao nosso redor. Permanece a percepção do hiato que nos distancia de tudo.

F: Trata-se de um paradoxo: Quanto mais atenção a isso, mais fortalecido fica. Depois de tanto tempo nesse processo de descondicionamento, não há mais o que ser feito, essa impotência de transcendência se torna óbvia.

O: Observando aqui nossa neta, o imaginal parece ter se instalado com aquele brincar de faz de conta, onde nos distraímos com um personagem. Vamos aprendendo a vestir personagens, enquanto brincamos com nossos brinquedos do momento. Veja que a vestimenta específica, está sempre relacionada a uma fase de nossa vida, a um alcance de propósito (roupa escolar, esportiva, de formatura, uniforme de trabalho, o chinelo noturno do pai)... Vestimentas dos personagens que vamos encarnando...

D: É bem isso: para cada personagem, para cada ambientação, um tipo de vestimenta; cada ambiente força um personagem e um condicionado figurino.

O: Cada ambientação tem um tipo de palco, um tipo de celebração ritualística. Tome por exemplo, a sala de aula... Começa com o ritual da chamada. Mudam os ambientes, os personagens, as vestimentas e os rituais... Isso vai colocando várias capas e máscaras no personagem. Personagem bom filho, bom irmão, bom pai, bom profissional, bom cidadão, bom pai, bom tio, bom avô... Em tudo permanece uma encenação, uma simulação... Penso que isso vai cristalizando em nós, até que tomamos consciência disso e, essa consciência acaba gerando essa percepção do vazio de tudo, da falta de realidade de tudo. Enquanto o personagem, a pessoa não é percebida, você encarna o Mister Anderson sem qualquer problema. Depois que a falsidade do Mister Anderson é

F: Porque nada é inerente. Até que ver que não há nada, que foi tudo agrupado sobre nada, sobre algo vazio.

O: Quando isso é percebido, surge esse impulso para a descoberta de algo que seja real, algo que não necessite do exercício de um personagem. Algo que nos apresente um sentimento de real significação e sentido.

F: Esse impulso se instala, fica rodando e nada rola. Não adianta mais nada. Quanto mais ficar meditando, refletindo sobre isso, só dá para ver que chega até aqui.

O: Sim, nesse terrível sentimento de impotência de transcendência dessa limitada e complexada estrutura insegura e desconexa. Por anos acreditamos ser os vários personagens que encarnávamos em cada ambientação, mas, pela exposição à crise que iniciou o processo de egoconhecimento, assim como pelas breves experiências daquela “coisa singular, incausada e impessoal”, percebemos que não faz sentido se conformar numa vida sem autenticidade, sem originalidade, uma vida pessoal, uma vida de personagem. A vida impessoal, a vida sem personagem interno ou externo, foi experimentada de fato, e, por meio dessa experiência, a continuidade no personagem se mostrou algo enfadonho, patético, sem sentido. Até mesmo o exercício de uma função que é percebida tão somente como uma fabricação de personagens sociais, para a manutenção e cristalização de egos, deixa de fazer sentido.

F: O que é o próprio personagem enfadado de si, de saco cheio de si, entediado, que é o próprio imaginal. Depois de perceber isso tudo, onde entra a observação agora?

O: A própria observação pegou que só observa loopings da estrutura. Talvez, loopings mais sutis da mesma. Mas permanece no assistir de loopings.

F: Observação deixa preso no só observar a si mesmo, nesse jogo sem fim. Enquanto isso não olhamos com os olhos reais o que nos rodeia. Olhar para dentro é o truque sútil da coisa: para dentro nunca tem fim; casa de espelhos... E cansa! Sempre é percebido mais do mesmo. Isso não importa mais.

O: Não há dentro e fora: tudo é o mesmo jogo de espelhos.

F: Com certeza. Só o que é de fato sem estender a coisa; nós é que acrescentamos todo o resto conforme ditam nossos condicionamentos. Não serve mais.

O: Mas não vemos o que é, vemos a ilusão do que é; o que pensamos que é, não é a exata natureza. A vivência daquele “estado singular de ser”, deixou clara que a realidade que temos por realidade enquanto no personagem, não é a realidade real.

F: Mas a vivência daquele estado incausado não ficou, não temos ele aqui e agora e de nada adianta espernear ou mesmo querer o retorno daquilo. Tal querer só fortalece mais e mais a tensão. O lance é parar com a masturbação mental, só. Infelizmente é ficar aí, sem esticar. Estou nisso. Por mais refinado que pareça, só inserimos mais e mais ilusão sobre nada; é só mais e mais da mesma estrutura. Hoje observamos o samba do observador refinado.

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