22/12/2021

É possível sair da estagnação por meio de um looping de ilusão?

B: Então, tempos atrás eu me encontrava bem estagnado, numa rotina de vazio total, mas agora, a coisa deu uma reanimada.

O: O que era se sentir estagnado? Porque esse se sentir estagnado é o momento que eu e Deca estamos vivendo; nos sentimos como que num platô, onde não se percebe algo além. Tudo que vemos na estrutura social, não nos traia mais, por isso nos sentimos como que estagnados.

B: Eu tive contato com algo superior, vamos colocar assim, mas aquilo não ficou e me vejo novamente na minha rotina, a qual sempre esteve baseada no medo. Mas agora eu estou fazendo algumas coisas para tentar mudar.

O: Mas o que você está tentando mudar? As situações externas? 

B: O que estou fazendo é tentar me desafiar cada vez mais, me movimentar, entende? Porque eu senti que eu estava ficando muito fixo, sem vida.

O: E o que é para você hoje, uma rotina que não é fixa e que lhe apresenta vida? O que você quer dizer por se movimentar? O que é isso?

B: Fazer coisas que me desafiem e que me tirem da minha zina de conforto. Hoje eu vejo que em tudo dá para você fazer coisas diferentes, dá para tirar você da sua zona de conforto, sair do medo. Em toda atividade, seja no local de trabalho ou então ao conversar com alguma pessoa que você percebe que só está em busca de satisfazer seus desejos egóicos. Parece-me que em toda situação, dá para você fazer algo diferente, sair do padrão de monotonia. No momento, estou apostando nisso, porque eu estava naquelas de só ver graça em algo que me fizesse sentir novamente aquilo que senti naquela experiência religiosa. Então, hoje, estou tentando ver graça em coisa do tipo como jogar baralho, entende? Acho que eu estava com um olhar errado para a vida, porque parece-me que estou chegando numa visão de que as coisas que se apresentam para mim, são o melhor que o universo tem da melhor maneira possível para que eu consiga sair desse meu entrave do medo, sair do meu estado inconsciente e me tornar mais consciente. Então, a realidade que tenho hoje aqui, com todos os problemas, é o degrau que o universo está me proporcionando para que eu mude a qualidade do meu olhar. Eu acho que essa linha de ação faz mais sentido para mim, acho que isso talvez me proporcione a possibilidade de enxergar algo além, até mesmo nas coisas ordinárias. A mesma realidade que eu tenho hoje é a que eu tinha ontem, mas ontem, eu não enxergava nada além nessa realidade. Hoje eu consigo enxergar algo além.

O: O que você enxerga além? Você vê beleza? Você vê graça? Consegue mesmo ver isso?

B: Hoje eu vi tudo igual, mas essa ideia de enxergar algo além nas coisas tidas por ordinárias, isso faz com que eu me atire no momento.

O: Mas o que é isso de enxergar algo além? O que você está enxergando de diferente hoje? Quero muito saber como conseguir isso, pois não consigo perceber nada além de uma enfadonha rotina sem sentido e sem profundidade nos contatos. O que vejo é uma enorme, uma incontável roda de condicionamentos. Não consigo, de modo algum, ver beleza nisso que está sendo cotidianamente apresentado. O que é que você está vendo além do que via antes como rotina sem sentido? O que vê agora?

B: Agora eu não estou conseguindo ver nada; 99% do meu tempo aqui, não estou conseguindo ver, mas eu tive alguns lampejos onde consegui ver a beleza no feio, digamos assim. Mas o modo como eu estava olhando estava muito zoado, mas ainda perco o foco. Mas eu já consegui ver as pessoas eu seus afazeres diários, mesmo com seus condicionamentos, e ver beleza nisso. Essa coisa de ficar buscando a iluminação... Quantas pessoas conseguiram isso e ficaram nesse estado iluminado? Eu hoje vejo essa busca por um estado supremo de iluminação como mais uma ilusão. Essa iluminação não é fixa, ela vem e vai. Eu vejo o ser humano como uma ponte entre o céu e o inferno... veja, o ser humano é a ponte; ele está sempre conectado entre o inferno e o céu. Fazendo uma analogia, nessa ponte, se encontra a nossa identidade. Quando o ser humano deixa de lado a sua identidade, ele se ilumina. Eu estou tentando enxergar assim.

O: Você quer dizer que está se condicionando a ver as coisas desse modo?

B: Não sei se isso é um condicionamento...

O: Não é o que a sua mente está contendo agora?

B: Não sei!

O: Isso é uma tentativa ou é algo natural seu?

B: Sim, estou tentando, mas, assim... Eu penso que o condicionamento é algo que vem sempre do externo, algo que vem da cultura.

O: Independente da influência da cultura, você cria também seus próprios condicionamentos. Você acabou de dizer que está tentando, mas que não consegui em 99% das tentativas, ver algo de diferente do que via, como conseguiu ver num momento de lampejo. Quando você me afirma que “está tentando”, isso não é o mesmo que dizer que está se condicionando? Você não está colocando uma condição para si mesmo? Fazer assim e não fazer mais assado? Não vê que isso é uma condição imposta e que não parte de algo natural?

D: A mente falando: Agora não verei mais como antes, verei de forma diferente! Não percebe que é a própria mente no comando, tentando sair do sentimento de estagnação e do vazio da rotina em que ela se percebe inserida?

O: No nosso momento, meu e de Deca, não brigamos mais com o que se encontra estruturado na cultura social, mas, para nós, não vemos graça e beleza em nada do que se encontra estruturado; nada nos entusiasma, nada nos atrai. Nada nos impulsiona ao ponto de colocarmos nossa energia e nosso tempo naquilo. Apesar de não pararmos de observar, não encontramos nada que faça real sentido. E, com base nas vivências tidas do estado incondicionado de ser, sentimos tudo isso como uma grande ilusão, algo parecido com a expressão “Matrix”.  Isso é uma ilusão e não temos mais como nos apegar nisso que vemos que é ilusão. A maioria se apega nisso, porque desconhecem a grandeza e a realidade daquilo. Mas a realidade aqui, é que a felicidade, a liberdade, o amor e a comunhão permanece aqui. Aqui não tem nada de realização, iluminação ou conexão real; só não entramos mais em conflito nem com as situações internas e nem com as situações externas. Se isso está funcionando para você, ficamos contentes por isso, mas, para nós, não tem como. Eu e Deca, por mais que sejam os nossos esforços, não conseguimos ver graça e beleza no que se apresenta ao nosso redor (não estamos falando da graça e beleza que são produtos do condicionamento cultural; falamos da Graça e Beleza Reais). Seja a conversação social, sejam as tradições, sejam os assuntos religiosos, filosóficos ou espiritualistas, tudo isso perdeu seu poder de encantamento. Não temos mais como investir em nada disso; só entramos nisso quando estritamente necessário, quando não há formas de escapar da situação. Tudo se mostrou pequeno demais depois da grandeza daquelas vivências inusitadas, daquela vivência singular. Participamos dos núcleos familiares e de trabalho, mas, percebemos a superficialidade e a ilusão de quase tudo que ali é apresentado... rotinas e abordagens que se mostram sempre condicionadas, repetidas, imaturas e superficiais..Não há a menor possibilidade de se apresentar algo disso que nos foi apontado quando nas vivências daquele estado singular de ser. Não tem como falar sobre isso porque as pessoas não acessam, isso não faz parte da cultura estabelecida; não há abertura para isso, o cérebro não alcança e, com poucas palavras, se protege por meio da letargia.  Por isso que hoje afirmamos nos sentirmos num platô, num ponto de estagnação; estagnamos num ponto de percepção da realidade e não há a menor possibilidade de voltarmos ao ponto anterior de percepção. Não temos como nos forçarmos a ver beleza no feio... Ou essa beleza é percebida, ou não. O fato é que hoje, não conseguimos ver beleza. Temos que ficar com a realidade, por mais angustiante que seja. Não tem mais como se agarrar em achismo ou práticas que já se mostraram ilusórias. Todo esse lance de tentar alimentar apenas bons pensamentos, ou ver apenas o lado bom das pessoas e circunstâncias, aqui, não rola. Se isso funciona para você, ficamos contentes, porque não é nada agradável ficar com esta inquietude de base, mas, para nós, não isso funciona.

Hoje não tem como fazer uso de qualquer coisa para tentar aplacar essa inquietude básica; as próprias reuniões no Paltalk, depois de observadas, se mostraram como ilusórias tentativas de sair dessa inquietude. Claro que nos ajudaram a ter uma percepção melhor do mecanismo da estrutura mental e emocional condicionada, mas, não proporcionaram a transcendência de seus limitantes condicionamentos. Nada disso nos libertou. Não sabemos o que é felicidade, amor, liberdade, comunhão, compaixão... tudo isso são só conceito herdados somados a tentativas vãs de alcançar seus significados. O que temos aqui é a inquietude, sem acrescentarmos mais inquietude à inquietude original. Nem tentamos colocar coisas ou ações calculadas para tentar superar tal inquietude, tipo, crenças, livros, escolas, diversificação de consumo ou coisa parecida.

B: Penso que não se trata de um condicionamento, mas sim, de uma percepção particular.

O: Você não precisa ficar com nada do que estou lhe falando, muito menos precisa me provar algo. Se isso realmente está funcionando para você, ao ponto de você poder se olhar no espelho e dizer para si mesmo que é feliz, que é livre, que ama e que realmente sabe o que é compaixão e comunhão, por favor, esqueça-nos e viva isso! Nós não vivemos isso!

B: Penso que a expectativa de viver isso, é uma forma de condicionamento que talvez esteja impedindo de você viver isso.

O: Você está com uma insuportável, quase que enlouquecedora dor de dente... Como não ter expectativa de que a experiência com um dentista possa acabar de vez com ela? Se estamos com uma dor crônica em nosso estado de ser, como não alimentar a expectativa de encontrar algo superior aos nossos esforços, que possa acabar de vez com essa dor? Como não querer acordar logo cedo, sem ser despertado pela inquietude (a qual muitas vezes é percebida até durante o snho)? O que sentimos é o looping de uma rotina sem beleza e sem sentido. Não temos mais como ficar contando historinhas para nós mesmos; temos que lidar com o que é. O que é, é essa estrutura isolante... Tudo que você está nos dizendo, já tentamos mil vezes antes e não resultou no calculado... Ver beleza nas pessoas e circunstâncias... fica tudo só no nível conceitual, não dá liga real.

B: Não é disso que estou falando! Estou falando de algo que não é produto de um esforço racional. Trata-se de uma questão de você “trabalhar a sua energia”, conforme a sua capacidade. Com certeza, racionalmente, não sentimos nada. Vou dar alguns exemplos de coisas que tenho feito e que percebo que me fazem bem: me alimentar bem, que é algo que faz a energia fluir de modo saudável. Todas as manhãs, estou praticando dança, e isso traz uma energia legal para o corpo. Resumindo, estou buscando por ações diferentes.

O: E quando você se encontra sem essas ações calculadas? Já experimentou ficar sem essas ações, que eu qualifico de drogas energéticas? Quando fica só consigo mesmo, qual é a realidade mental e emocional?

D: Porque tudo isso acaba sendo novos modelos de doações psicológicas externas, com as quais ocorre a narcotização momentânea dos sentimentos.

O: Quando você acorda, sente-se pleno pelo simples dato de estar respirando? Não vejo mais sentido em ficar procurando coisas para tentar modificar a natureza da energia sentida.

B: Entendo bem isso que você está dizendo. Mas qual o sentido que querer estar bem e não fazer nada?

O: Eu não estou lidando mais com conjecturas; se esse incausado bem-estar se apresentar, quando se apresentar, verei o que ele me apresentará para fazer ou não fazer; o fato é que esse bem-estar agora não está aqui. Esse é o fato! Conjecturas são apenas fugas ao fato. Claro que esse processo de descondicionamento nos deu condições de sermos mais sociáveis com as pessoas, de estarmos com elas sem cobrá-las por seus condicionamentos; mas é também impossível não ver com clareza tais condicionamentos e a ausência de contato real. Não há afinação de propósitos e de percepção da realidade. Claro que gostaríamos de fazer coisas diferentes e que se mostrassem com real sentido, mas, até aqui, não as encontramos. Olhamos, olhamos e olhamos e nada nos atrai, percebemos tudo como variações levemente modificadas do já manifesto. Basta uma olhadela e a consciência já aponta o falso, já mostra que não resulta, que não é por aí.

Hoje temos a claríssima percepção de que a nossa qualidade de bem-estar não pode estar dependente de nenhuma ação ou circunstância externa; não pode estar associada a qualquer tipo de prática calculada, porque, se assim for, se tal prática faltar, igualmente faltará o bem-estar. Queremos saber o que é estar bem pelo simples fato de abri os olhos, ou de sentir o sopro nas narinas... um bem-estar que não tem causa, que não é produto de um cálculo autocentrado. Não temos isso hoje! Temos boas pessoas e circunstâncias ao nosso redor... todos com seus condicionamentos e limites culturais, mas todos do bem! Não temos problemas circunstanciais, o que temos é essa inquietude de base, a qual impede a real conexão. Tudo fica no nível dos conceitos, no nível do mental, não há conexão real ou percepção da beleza real. E vivemos mais que uma vez a conexão com aquele estado singular onde tudo é beleza e maravilhamento, onde tudo é graça e vivacidade... como não querer aquilo novamente? Como? Como ver inteligência em tentar ver beleza onde não conseguimos ver beleza, se existe um estado sem esforço, onde tudo é visto em sua beleza singular? Quem viveu isso, numa intensidade tal, não tem mais como se contentar com esse esforço vacilante que, no máximo, só tem o poder de ver a beleza que não é beleza de modo algum, mas sim, um compartilhado condicionamento conceitual. Esse esforço é que já fazemos há muito tempo, lidar com o que tem pra hoje, tentando dar o melhor de nós mesmos, não fazer exigências dos demais, não julgá-los...  Mas temos que ser honestos: isso é um porre! O que tem aqui são dois seres inquietos em busca de uma resposta libertária. Nessa busca, passamos por tudo que está aí, crenças, escolas esotéricas, grupos espiritualistas, o próprio paradigma holotrópico... tudo isso em seu devido momento, se mostrou como algo limitado, sem o poder de transcendência. Serviu por seu tempo, mas já não dá mais liga, já não dá a antiga ilusão de conexão. Então, hoje, existe algo que nos conecte? No momento, não! Aqui não tem depressão, mas também não tem mais a possibilidade de ficarmos contando historinhas para nós mesmos. Não tem como se sentar com o outro que vem sempre com os mesmos papos socialmente alimentados, coisa como Lula, Bolsonaro, Palmeiras, investimentos na bolsa de valores ou em bitcoins, e ver graça nisso. Não tem como.

B: Estou tentando com isso, salvar o rolê!

O: Se isso funciona para você, vai fundo! Se ao acordar pela manhã, ao se olhar no espelho enquanto escova os dentes, e vê brilho real nos olhos refletidos no espelho... Que bom! Mas aqui, não tem isso! O que vejo aqui é um cara inquieto.

B: Aqui ainda não tem esse brilho real.

O: Temos dito que parece ser necessário algo como um update na capacidade de observação da realidade, algo que não seja um cálculo a mais da mente, mais um de seus truques. Se ocorrer isso e eu ver beleza, tudo bem! Mas, práticas calculadas! Para, estou fora! Quero saber o que é viver em plenitude; sei que isso existe porque tive três vivencias em tal qualidade de ser. Sei que isso é possível, que é real. Não entendemos o porquê desse estado incondicionado de ser não permanecer; mas ele existe, definitivamente existe. Trata-se de um estado de ser em que você não se vê nem mesmo condicionado ao próprio corpo, nem ao tempo, nem ao espaço e nem a dualidade conceitual de bem e mal, feio e belo... nada disso existe ali!

D: Só existe o Belo e tudo está embutido nele!

O: Sabemos que isso existe, assim como sabemos que o que se apresenta aí, é um porre! Um dos questionamentos que compartilhamos é o de qual foi o sentido de termos tido a vivência daquele estado singular, com sua incalculável abertura de consciência, e voltar para este estado condicionado, no qual hoje temos a clareza da percepção de sua limitação, de seus condicionamentos, de sua insanidade, e não conseguir se ver livre de tudo isso, de se ver prisioneiro de um looping de coisa sem sentido e sem beleza real? Qual o sentido de saber nomear muito bem as várias facetas da estrutura condicionada, sem ter o poder de transcendê-la? Como se contentar com o gosto de mofo quando nos deliciamos com a doçura do mel?  Não há como dizer para si mesmo que aquela vivência foi mera ilusão, uma espécie de delírio; cada célula do corpo grita em defesa de sua realidade, que é a única realidade.

B: Mas, com base no que os outros deixaram escrito aí, você acredita que é possível chegar nesse estado e nele ficar pelo tempo que lhe restar?

O: Não me interesso mais pelo que os outros homens disseram ser possível ou não. Sei que aquilo é real e que é o nosso estado incondicionado de ser; não tem nada de Deus, vinda do espírito santo ou do raio que o parta! Aquilo é você, sou eu e tudo que é! O que disse Buda, Jesus, Ramana, Krishnamurti, quem quer que seja, não significa mais nada para mim. Precisa ocorrer aqui, na totalidade das células cerebrais, uma nova capacidade de percepção... Algo interno, que não depende de nenhum cálculo, nenhum esforço, nenhuma prática ritualística, nada dessas invencionices que o homem vem tentando ao longo de séculos, de modo infrutífero. Tentamos muito disso tudo e nada se mostrou, de fato, funcional. Essa inquietude básica não pode ser plenamente silenciada com nada do externo. O que ocorreu naquelas vivências singulares, não veio de fora... aquilo éramos nós e não dependeu de nenhuma ação calculada. E do mesmo modo que veio, se foi... Mas não tem como negar a beleza, o maravilhamento, a dimensão sensorial daquilo, a vivacidade, o brilho, a intensidade, o abarcamento, a amplitude, a magia, a comunhão e conexão de tudo aquilo... E se ver aqui, nessa vidinha rotineira de coisas superficiais onde ninguém se relaciona de fato com nada? Onde todos se esforçam inutilmente para se conectar? Não vejo ninguém livre, ninguém sabendo o que é felicidade, liberdade e amor... cada um prisioneiro de seus medos particulares... Onde a compaixão é só um conceito nos lábios sem cor... Não tem como, esse teatro não dá mais liga! Essa é a pergunta que deixo para você: ao acordar, pela manhã, quando olha para o teto, sente tesão mesmo de sair da cama? Sente-se grato por um novo dia?

B: Não!

O: Então, confrade, tem algo errado aí! Algo aí no seu discurso, não bate! Aqui, nada do que está na sociedade, me atrai. Um leve lance do olhar e o falso logo é percebido! Não dá, por aí, não vou!

B: Você afirma que essa coisa precisa vir de dentro, então, é falso quando busco algo no externo que me produza alguma satisfação?

O: Se você está buscando por algo externo que substitua sua insatisfação de base por uma esperada satisfação, então, isso é falso... Não há diferença disso com o uso da bebida, da droga, do sexo, da busca de poder. O fato é a insatisfação crônica; é ela que é a natureza exata que está motivando a ação. Qual a diferença de você está buscando satisfação na dança e o meu vizinho estar buscando no uso da maconha? Não vejo diferença, a não ser nos critérios de valores de certo e errado que cada um carrega; o movimento é igual, só foi diferente o tipo de droga anestesiante.

B: Mas se você buscar, por exemplo, no sexo, de um modo equilibrado, buscando por prazer associado ao amor...

O: Mas você sabe o que é amor? Sabe mesmo? Você ama?... Não adianta ficar com historinhas, é preciso ver isso com muita seriedade porque se trata da sua própria vida... Você sabe realmente o que é o amor? Por mais afinidade que temos com as pessoas com quem nos relacionamos, você não percebe que sempre permanece ali um hiato, uma distância, algo como uma bolha que nos isola, que nos impede de se sentir um só com o outro? Sempre fica uma distância, um hiato, sempre é percebida a ausência de conexão real. Há, sem dúvida, um bem-querer histórico, digamos assim... há uma história comum que gera um apego, uma preocupação, mas, sabemos de fato o que é amor?

D: O que há é o condicionamento de que temos que amar essas pessoas que fazem parte do nosso círculo histórico.

O: Não temos mais tempo para brincar de amor... Nós tentamos de tudo, buscamos de tudo para ver se conseguíamos sair dessa bolha isolante, mas nada se mostrou realmente funcional. Tudo é bunitim no início, mas logo se mostra falso.

B: Você me pergunta se eu sei o que é o amor... Você já sentiu uma conexão maior com alguém, algo diferente do ordinário?

O: Só senti isso dentro daquela vivência inusitada. Sempre ocorreu no máximo, uma atração pelo físico ou por alguma afinidade de busca. Mas esse sentir profundo, tenho que ser franco, eu desconheço. Algo ocorreu comigo em minha historia que me tornou assim, e confesso que estou cansado da percepção desse crônico isolamento emocional. Vejo as crianças e a mente, com seus condicionamentos, diz: Que linda! Mas eu não sinto essa beleza! Fica só no nível dos conceitos mentais. Não ocorre a conexão real, sempre é percebido um hiato. Outro dia eu conversava com uma senhora da terceira idade, e ela me dizia que sentia essa distância com os próprios filhos, tanto por parte dela, como por parte deles; ela mesma afirmou que não sabe o que é o amor e que não sente que seus filhos sintam amor real por ela; ela consegue ver que muito do que fazem por ela, cai no condicionamento ético, que não tem nada de natural ali, no máximo, um derrame de apego. Esse é o nosso momento aqui e, confesso que o que mais queremos, é saber o que é a realidade do amor, o que é a plenitude no viver; viver não pode ser só isso que se mostra pequeno demais! Amor, felicidade, liberdade, compaixão e comunhão, hoje são só lembranças daquelas ocorrências naquele estado singular; mas aquilo não ficou. Em minhas pesquisas, não encontrei um homem que afirmou ficar nesse estado singular; o máximo que encontrei são relatos de vindas esporádicas daquilo. Um exemplo disso é o que Krishnamurti relatou em seu breve diário. Não sabemos se é possível viver naquele estado incondicionado de ser, mas sabemos que ele é real. Conjecturar sobre aquele estado singular, ou sobre amor, liberdade, felicidade e comunhão real, é algo que também se mostrou sem sentido algum. Conjecturas não resolvem; bafo de boca não cozinha ovo! O que conta para mim é a pergunta: eu sei neste instante o que é isso em meu viver? Vivo isso agora? Não! Eu vivo a percepção da ausência disso, essa distância que permanece em tudo... Vejo o pôr do sol, ou o movimento de uma criança e a mente conceitualiza sua beleza, mas o coração não sente essa beleza. Eu abraço e sou abraçado, mas não sinto a conexão.

B: Eu entendo o que você está falando. Percebo que só nos relacionamos conosco mesmo, mas, como você sabe, todos nós temos uma centelha divina...

O: Não! Joga fora tudo isso! Não sei nada disso! Isso para mim é ranço de crença. Não entro mais nesse tipo de conversa.

B: Veja, existe algo muito louco que você também já sentiu.

O: Aquilo não era algo, aquilo era você mesmo, sem condicionamento algum. Não tem nada de centelha divina, Deus, descida do espírito santo ou o que quer que seja!... Aquilo era só você em seu estado natural, em sua exata natureza incondicionada. Nada mais que isso!

B: Eu vejo que tudo que é externo é aquela coisa louca se relacionando consigo mesmo. Porque, no meu ver, a fonte de tudo é essa energia divina.

O: Ok! Se é assim, então, me responda: porque não existe felicidade e maravilhamento aí agora, em sua vida? Esse é realmente um belo discurso, mas, ele funciona? Se funciona, por que a distância é percebida aí? Por que não existe comunhão? Por que você permanece se relacionando apenas consigo mesmo? Só me responda as perguntas, porque não tenho interesse nas novas crenças que você está sustentando para si mesmo. Quero lidar com os fatos, com o que é. Você é feliz? Você é livre? Você está em conexão real com alguma forma de consciência? Você se vê, realmente, um com tudo que é?

B: Não! Não vivo nada disso!

O: Então, qualquer coisa que você quiser me falar aí, é só mais da estrutura.

B: Cara, eu acho que tudo isso que você está falando, essa coisa de amor e comunhão, tudo isso não passa de ilusão. Ninguém pode dizer eu amo, eu sou feliz, porque o amor e a felicidade não são coisas estáticas.

O: Então, você mesmo afirmou que você “acha” isso... só mais uma crença levantada por conceitos que colheu por aí. Você acha... perceba seu novo tipo de crença aí... Por isso que estamos nos afastando cada vez mais desse tipo de conversa que só se sustenta numa disputa de crenças, de incertas certezas emprestadas. Achar não é o que é! Não me contento mais com achismos, quero o que é! Não vejo como insanidade, querer o real ao invés do que se acredita ser o real.

B: Entendo! Mas só que o meu achismo se baseia naquilo que eu vivi um dia no passado.

O: Mas isso é algo morto, também não serve, visto que não se encontra aí agora, nesse instante. A lembrança do melhor dos baquetes não mata sua fome de agora.

B: Mas se eu for por essa sua linha de raciocínio, tudo acaba se mostrando sem graça.

O: Uma vez me veio uma pequena poesia: É preciso que tudo perca a graça, para que surja a Graça capaz de trazer graça para tudo que se mostra sem graça. Então, já não me esforço mais para ver graça: ou tem Graça ou não tem graça. Simples assim! Já não dá mais para ficar contando historinhas para mim mesmo. Não dá mais para ficar me segurando em qualquer tipo de crença ou de achismo. Bate o olho no espelho aí e vê se tem alegria mesmo, espontaneidade no viver. Se não tem... não venha me tirar do meu silêncio barulhento. Qual é a real do seu estado de ser, neste instante? Essa é a pergunta que me parece ser fundamental. O estado de ser não está nem aí com crenças e achismos. Isso é o que percebemos aqui. Sinto aqui que é preciso ocorrer algo, uma mutação na capacidade de percepção da realidade. Sem dúvida que ocorreu uma significativa mutação que nos deu condições de perceber muito da estrutura condicionada, seja a pessoal como a coletiva (a maioria nem sonha com isso); só que a qualidade de percepção alcançada, não nos deu o poder de transcender o que está sendo percebido como falso, como limitante. Essa capacidade de percepção nos mostrou a insanidade pessoal e coletiva, mas não nos mostrou o que é a sanidade. Só instalou uma sanidade que tornou capaz a percepção da insanidade, mas ficou nisso. Preciso ocorrer um upgrade na qualidade de percepção, a qual nos tire dessa percepção de terceira dimensão e que nos jogue naquele estado que não pode ser dimensionado de modo algum.

B: Entendo.

O: Cada um sabe muito bem o que realmente se passa na mente e no coração, e o que está buscando para tentar mudar isso que percebe, e tenho certeza, que aquilo que pensa e sente, não tem nada de gostoso. Não tem mais como brincar de ser feliz! No máximo, o que vemos por aí é tido por “bacaninha”, pois, não nos toca de fato. Aqui existe uma emergência pelo real.

B: Entendo bem o que você está dizendo e estou tentando algo para não chegar nesse ponto em que você se encontra.

O: Isso me faz lembrar a postura do personagem Cypher do filme Matrix, querendo permanecer na busca de prazer para não ter que viver o que Morfeus vivia. Este mês está estreando o filme Matrix 4, e eles estão falando sobre o looping das coisas repetidas, coisa que estamos falando há mais de ano. Eles estão usando inclusive a mesma expressão que aqui usamos: “looping da mesmice”. A fala no trailer do novo filme Matrix: “Vocês já perceberam que existe um looping de coisas repetidas todos os dias?”... Não é possível que só eu, Deca e mais dois confrades com quem trocamos diariamente, estão sentindo isso.

Não deixamos de fazer as coisas que se mostram necessárias no sistema; participamos dos eventos familiares, mesmo não crendo mais em seus valores tradicionais; só que nada disso nos toca mais, não produz entusiasmo real, na real, sinto como algo bem cansativo. Do jeito que entro eu saio: vazio! Porque ninguém está falando algo que me toque de fato, que me chame a atenção, que me deixe com um gosto de quero mais. Só escuto mais e mais do insatisfatório conhecido; assuntos sobre ruas sem saída pelas quais já entrei. Nada ali significa algo real. Confesso que continuo com a ânsia de encontrar alguém que me apresente algo que eu não tinha pensado ou vivido antes, mas, não encontro esse alguém.

B: Eu preciso me apegar em alguma coisa...

O: Por que você precisa se apegar? Por que não pode permanecer livre? Não seria a voz do medo que se encontra nessa busca de algo para se apegar, para que a vida se mostre com sentido?

B: Quando você fica estático, você começa a estagnar, porque a coisa começa a perder a graça inicial. Para mim, o que estou tentando hoje é me manter em movimento.

O: Já vive esse tipo de crença no movimento calculado, só que hoje, isso não faz mais sentido algum. Cansei de ficar pulando atrás de atividades; quero saber se existe um estado de serem que eu possa estar bem comigo, independentemente de qualquer circunstância externa, de qualquer doação de fora... se é possível ou não.  Porque, se não for possível, essa existência não faz sentido para mim.

B: Eu acredito que a vida só vai ter um sabor legal se você souber fazer usado adequado das coisas que se apresentam para você. Isso que estou enxergando hoje.

O: Olha no espelho e me diz se o cara que você está vendo, possui brilho no olhar. Você nunca mais vai olhar um espelho do modo como via antes dessa conversa. Não tem como enganar o espelho. Se não tiver realidade no viver, o espelho vai ficar cada vez mais pesado. O que mais quero é encontrar alguém que me diga: “Encontrei algo além do que você está apontando e que se mostrou realmente libertário”. Só que não acho isso!

D: Nós estamos tentando manter relação com as circunstâncias externas, mas, o buraco da insatisfação continua aqui e, depois da observação, tem se mostrado cada vez maior. Não encontramos a possiblidade de uma conexão real, tanto daqui para lá como de lá para cá. Observo facilmente que o que está aqui, está lá. Só que os demais ainda estão buscando pelo movimento enquanto nós já fizemos uma varredura nesse movimento de busca. Nada do que buscamos, nenhum dos nossos movimentos se mostrou realmente libertário, nada nos devolveu o brilho do olhar, nada trouxe uma conexão real. Nada tirou aquela sensação de isolamento, aquela sensação de vazio. Hoje é muito rápida a percepção do falso, o espírito que realmente está gerando o movimento, tanto aqui como lá. Não existe relação real, fica tudo só no nível dos cálculos autocentrados. Hoje isso é percebido muito rapidamente e sem qualquer esforço de nossa parte. Até o próprio paradigma ficou para trás, pois ele cumpriu sua função e também não nos libertou. Sem dúvida que ele nos possibilitou uma incalculada expansão na qualidade de percepção dos condicionamentos pessoais e sociais, mas não nos libertou da estrutura condicionada.

O: O paradigma nos deu condições de entender como essa estrutura foi criada, alimentada e cristalizada, mas não nos deu o poder de transcendê-la a pleno.

D: Não possibilitou uma significativa mutação psíquica.

O: Aquela vivência singular nos mostrou a ilusão da percepção onde se tem o interno e o externo como duas realidades separadas, mostrou a ilusão de espaço e tempo, a ilusão de observador e coisa observada, a ilusão de nós como uma pessoa separada das demais pessoas e coisas. Existia uma coisa única. Aquilo nos mostrou a ilusão do que hoje temos por realidade; isto que vivemos hoje não é a realidade real; trata-se de uma realidade encapsulada numa lógica e numa razão condicionadas ao seu limite de capacidade de percepção da realidade.

D: Exatamente! Não é real o que temos por real!  Naquela vivência singular, não existia a dualidade belo e feio... tudo era só beleza. Aquilo está acima dos conceitos de bem e mal, dentro e fora... está fora de toda forma de conceitualização.

B: Não sei se é condicionamento, mas eu não enxergo isso aí. Eu enxergo que estamos vivendo essa realidade que você fala, só que de uma maneira diferente.

D: Desculpe-me, mas não vivo aquilo! Não vou entrar nessa sua historia. Sei bem o que vivi e o que vivo hoje, nada tem a ver com a realidade daquilo. Se isso funciona para você, beleza! Para mim não dá! E eu não vejo brilho no seu olhar!

O: A observação amadureceu a tal ponto, que apenas duas ou três palavras eu já posso perceber as crenças, os achismos e os condicionamentos, todo o enredo do cálculo autocentrado na lógica e na razão condicionada. Já percebo o terreno em que o indíviduo está pisando, terreno que já pisamos antes e que se mostrou disfuncional, ilusório. Não adianta vir aqui e me dizer que a felicidade não é eterna... esses achismos não me interessam, pois eu vivi e sei o que é. Todas as palavras hoje perderam seu significado, se mostram muito pequenas. Tive aquilo por três vezes de modo muito intenso. Não tem como negar, porque eu soube o que é a felicidade, a liberdade, o amor, a comunhão, o que é a ilusão de dentro e fora, belo e feio, a ilusão de se acreditar ser uma pessoa separada das demais pessoas, eu sei de tudo isso. E sei também que o que vivo hoje, ainda é um estado de sonho, podemos até chamar de um estado de sonho lúcido. Nada do que vejo hoje, me apresenta liberdade, felicidade e comunhão. Eu não consigo ver beleza nessa estrutura, tanto interna como externa. É isso! Não vejo beleza no modelo social que nos obrigaram a participar, com sua jornada de trabalho absurda.

B: Eu vejo aqui que a vida é tipo uma escada circular, onde cada degrau é feito de uma ilusão; o problema é você ficar parado na ilusão; agora, se você está em movimento na ilusão, tudo bem.

O: Qual a inteligência de ficar saltando de ilusão em ilusão? Qual a inteligência desse movimento? Eu não quero esse movimento para mim! Segue nele você!

B: Isso faz sentido para mim!

O: Ok! Mas para mim, não tem sentido algum! Duas palavras e eu já vejo o absurdo, a ilusão. Qual o sentido de passar uma vida inteira saltando de ilusão em ilusão, só para manter a ilusão de que se encontra em movimento? Que movimento é esse que não apresenta o real e somente ilusão?

D: Continua a mente condicionada com base no medo, com seus movimentos ilusórios! É a mente que fica sempre pedindo pelo movimento, enquanto que homens como Ramana Maharshi, afirmam que aquele estado singular se apresenta pelo não ação (apesar que querer a não ação, já é uma forma de ação).

O: Cansei de pular de ilusão em ilusão, de adulteração em adulteração. Estes 30 anos de busca me possibilitaram perceber rapidamente os impulsos ilusórios. Quero achar algo com real sentido, mas, só me deparo com opções ilusórias, tudo dentro do mesmo modelo condicionado e condicionante. Tudo dentro do mesmo script. Não tem mais como investir em nada disso. Todos se movimentam para não se permitir a estagnação que apresenta a estrutura interna de medo, vazio, inquietude, contradição e oscilação de humor. Quero saber se é possível acordar pela manhã e sentir algo diferente e significativo, que me tire daquele looping de pensamentos contraditórios e conflitivos, ou da rotina enfadonha. Percebo que ninguém tem o interesse de questionar isso e, muito menos, de se ver livre de sua rotina, mesmo que ela seja enfadonha. A pandemia mostrou o que a quebra da rotina gera nas pessoas: a depressão, a falta de sentido e a percepção de que não existe amor real nas relações. O número de divórcios no mundo foi enorme. Cansamos de tudo isso e sabemos que estamos estagnados, que chegamos como que numa rua sem saída. Não tem mais o que ser feito e não tem mais onde se apegar. Ou acontece algo inusitado, algo que produza a capacidade de perceber algo que não foi percebido até aqui, ou então, é isso: permanecer no mesmo movimento que já se mostrou ilusório, limitante. Sempre tentando ver o melhor, mas, não tem mais como não ver o falso, não tem como não ver a exata natureza que está movimentando não só nós como aos demais. Cada um está sendo levado por seus cálculos autocentrados, cuja base, é medo.

D: E para nós que temos a observação, mais nos é cobrado quanto ao nosso movimento de ação. O outro está no automático, sem essa qualidade de percepção, e ele solta as coisas sem pensar, se entrega aos impulsos emotivos reativos; nós temos que nos conter na força. Se você achar algo significativo, estamos por aqui. Aqui continuamos num looping de rotina percebida como sem sentido. Beleza? Um abraço!

B: Valeu! Outro!

 

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