04/06/2020

É preciso observar a própria tristeza e a razão do viver



É preciso que exista mudança no processo de pensar, uma constante renovação da mente. Assim como cada dia é gracioso e novo, assim também, para entender o processo da vida — no qual reside a verdade, e em mais nenhuma parte — você deve possuir uma mente que continuamente esteja mudando e buscando, e continuamente alerta, sem permitir que passe um incidente único sem que ele lhe proporcione sua plena riqueza.

Falamos daquilo que é o desejo de todos. Não falamos a respeito de certa coisa misteriosa ou proporcionando-lhe uma revelação, pois que a revelação se torna sistema de crença organizada. A partir do momento em que existe um mistério implícito, sem real entendimento, surge o medo. Se você examinar a vida em sua pureza, ela responderá a todo o chamamento, replicará a toda a necessidade, e lhe dará o pleno significado de toda a luta.

Para chegar a uma tal posição, você deve depositar corretamente, por si mesmo, aconteça o que acontecer, sob quaisquer circunstâncias. O que colocamos diante de você deve ser seu, a fim de que essa segurança jamais possa ser abalada. Ninguém pode contestar o fato de o seu semblante, o seu nariz, os seus olhos, serem de um modelo particular. Você os conhece muito bem. Todos os dias os enxerga quando penteia o cabelo. Você os vê constantemente, apanha seu reflexo, e ninguém pode abalar sua confiança naquilo que sabe. Do mesmo modo precisa saber, se assegurar, sem sombra de dúvida, de que o que lhe estamos dizendo é seu. De outro modo quem quer que seja pode vir e derrubar-lhe. A partir do momento que você esteja certo — não de modo meramente intelectual, o que não tem valor, porém certo com essa certeza que produz resultado nas expressões da vida diária — então essa certeza tem valor. Esta certeza será sua, e ninguém poderá lhe arrebatar. Ela é filha da sua própria experiência, do resultado de sua tristeza, e de sua busca. 

Não estamos inventando coisa alguma. Estamos expressando em palavras o que reside oculto no coração de cada ente humano. Isto deve estar relacionado com a vida, e não longe ou separado dela, pois sustentamos que, na harmonia dessa vida — a qual é você mesmo — e no atingir dessa harmonia, reside o processo da verdade. Na aquisição dessa harmonia, dessa estabilidade, dessa realização da incorruptibilidade do eu, reside a verdade que cada homem, tal qual você, está continuamente buscando, seja inconsciente, seja conscientemente. Nisto não pode haver revelação. A partir do momento que você cria um elemento de mistério, do que está sendo exposto como algo secreto, surge toda a gama de desentendimento, de superstição, de algo estranho a você mesmo, do qual você passa a depender. Estamos explicando o processo da vida, que cada ente humano está lutando para expressar e compreender. Se este entendimento lhe pertencer, se intuitivamente você sentir que ele faz parte de sua vida, então estará certo, então nem um milhão de pessoas lhe pode abalar, nem o podem as escrituras, nem mesmo os livros sagrados, podem alterar sua percepção.

Você como indivíduo, está a todo instante se rodeando de irrealidades. Você na irrealidade, e, pelo fato de a irrealidade ser treva e ignorância, você inventa luzes para iluminar essa treva. O propósito do homem inteligente é colocar em evidência as várias ilusões que cercam os homens, e auxiliá-los a destruí-las. Este é o nosso propósito. À medida que a civilização — que definimos como a expressão da cultura, e a cultura como beleza única do eu —se torna mais e mais complexa, a irrealidade se acrescenta. O homem é colhido por essa irrealidade, e é nessa escuridão que ele necessita de luz. Ele quer encontrar a verdade; e não o consegue, porque a verdade repele tudo quanto não for de seu próprio caráter.

Não estamos em busca de concordância, mas sim, de entendimento. A partir do momento em que você compreender, começará a viver, o que é infinitamente maior do que a concordância. Por isto é que pretendemos que você alcance o significado do que estamos dizendo. Nosso objetivo é salientar as irrealidades que para você se tornaram reais, e fazer-lhe compreender. Não que queiramos lhe forçar, porém, ao contrário, queremos lhe fazer verificar, por você mesmo, as irrealidades, de modo que você possa desenvolver suas próprias capacidades de discernir aquilo que é efêmero, e aquilo que é real. Quando você por tal modo se assegurar, quando assim houver se certificado, então não inventará mais irrealidades de sua cabeça. Você pode ver através de muitas irrealidades, muitas coisas passageiras, porém, se possuir certeza, será sempre capaz de discernir e de rejeitar, de aceitar e negar. Quando estiver certificado, então será o tempo de semear. Quando estiver seguro, e com prática, então será tempo de edificar; pois que, então, você edificará em seu próprio entendimento da verdade. E a desenvolverá em sua própria uniqüidade e não por meio da uniqüidade de outrem. Porém, esta capacidade para entender a vida, só pode vir quando você estiver certo. Nós lhe falamos de tudo isto, porque nós o atingimos. Não se trata de uma força misteriosa que penetre em um ser humano, e altere integralmente a sua atitude de mente e de coração; é uma luta constante para reajustarmos a nós mesmos, um constante esforço para distinguir o efêmero e o irreal, do duradouro e do real, para descobrir a verdade na falsidade, e a beleza na feiura.

Mantendo em mente que você precisa estar seguro sobre qual é o propósito da vida, certo por você mesmo, e para além de toda a sombra de dúvida, sob este ponto de vista examine o indivíduo. Somente nos preocupamos com o indivíduo, visto que na presente civilização, o grupo se esforça por dominar o indivíduo sem se preocupar com o seu crescimento. O que é importante é o indivíduo, visto que se o indivíduo for nítido em seu propósito, se estiver seguro, certo, então cessará a luta contra a sociedade. Então, ele não será dominado pela sociedade; e será livre e independente da sociedade, da moral, da estreiteza, das convencionalidades de sociedades e grupos. 

O indivíduo é o universo inteiro, ele é todo o mundo e não parte dele, o indivíduo é todo-inclusivo, não todo-separatista, porque o eu em cada um está continuamente fazendo esforços, experimentando em diferentes direções; porém, o eu em você e em nós, e em centenas de outras pessoas, é o mesmo, visto que as expressões possam variar e tenham de variar.

O indivíduo é o foco do universo. Desde que não entenda a si mesmo, em toda a plenitude, você pode ser dominado, controlado, guiado, auxiliado, impelido, colhido pela roda da luta contínua. Assim, você deve se preocupar com o indivíduo, isto é, consigo mesmo. Absolutamente, não estou empregando um ponto de vista egoísta. Experimente com aquilo que você próprio entender ser verdadeiro, e não com aquilo que os outros dizem.

No indivíduo, — isto é, em você mesmo — existem dois elementos: o progressivo, e o eterno. O eterno é o acúmulo de suas experiências, que é também o acúmulo das experiências de todos. Visto que, ainda que as experiências possam variar em expressão, o resultado das experiências, é o mesmo em sua essência. Por exemplo, a experiência da cólera... — um homem pode ter a experiência de um modo, outro de outro modo, mas o resultado da experiência no crescimento será o mesmo. Você está constantemente acrescentando este eu eterno, por meio das experiências incidentais do eu progressivo, e pelos resultados dessas experiências. Isto é, você está trazendo o eu progressivo à união com o eterno, sendo que o primeiro depende dos incidentes de cada dia, que é o resultado de suas experiências e que, uma vez mais, é o eterno em todos.

Isto não é muito complicado nem difícil de compreender. Repetimos que existe, em cada ente humano, esse elemento resultante da experiência acumulada, que é eterno. Depois existe esse outro elemento que é progressivo, que está procurando a todo o instante transformar tudo que o rodeia, todo o incidente, todo o acidente, todo o pensamento, no eterno. O progressivo, por meio da experiência, esforça-se por absorver realidade no transitório, procura a beleza no feio, a verdade no falso. O eterno é o que chamamos libertação, essa parte de você que está absolutamente liberta. Isto é uma analogia, não corra para tornar isto uma coisa morta. Existe o resíduo da experiência que lhe proporciona certa liberdade, que não exige experiência ulterior da mesma espécie, e, daí, essa parte de você se achar liberta e pertencer ao eterno, o eterno de todas as coisas e de todos.

Se o seu eu progressivo não estiver em união com o eterno, manifesta-se a tristeza, dá-se a luta, o constante julgamento, o constante combate, a constante busca atrás do que é real. Assim como um pássaro abre caminho através de um vale, através da cidade barulhenta, e retorna sempre ao seu lar, assim, se o seu eu progressivo conhece o eterno, pode vaguear através de todos incidentes e acidentes da vida, e absorver o eterno. Isto é o que você está se esforçando por fazer na vida. Nada existe de misterioso a este respeito, não se faz necessário pensamento metafísico. Por meio dos fenômenos e da expressão, o eu progressivo está tentando encontrar o que possa acumular e, por meio de tal, tornar-se a si mesmo eterno. Enquanto existir este abismo entre o eterno e o progressivo, naturalmente este abismo cria uma exigência contínua de preenchimento, e o processo de preenchimento é luta, busca, experimentação, todas as mil e uma coisas da vida, porque somente pela vida você pode encher esse abismo, tornar o eu progressivo em eterno, afim de que toda a luta cesse.

Somente pela luta vem a cessação da luta. Não é se afastando deste mundo, que é expressão do eu, que você encontrará o progresso e o crescimento do eu. Porém, se o eu progressivo não souber o que é eterno, então você será semelhante a um navio sem leme, como um pássaro sem ninho, como a águia que não tem seu lugar de habitação no cume da montanha, longe do tumulto, longe da luta incessante. Por isso é que você necessita encontrar por si mesmo, segura, certamente, sem sombra de dúvida, o que é durável. Dizemos que o eterno é vida; e por esta, entendemos a vida do pensamento que é razão, e o afeto que é equilíbrio. Enquanto sua vida individual estiver ligada à experiência, não pode ocorrer o atingir da verdade, porém, a partir do momento que você tenha atingido a harmonia do eu, existe verdade, libertação e, eternidade. 

Enquanto se encontrar em processo de atingir, você afirma, e, no afirmar, cria tristeza. Você tem que afirmar, não pode fugir a isso. A afirmação é da própria essência do eu, e você não pode fugir a essa afirmação, afastando-se do mundo. Enquanto estiver incerto quanto a essa realidade, o eu progressivo nada possui para poder se guiar. Então você, como indivíduo, estará sem lar, vagueando daqui para ali, abatido por toda a experiência, sem recolher para si mesmo a essência de toda a experiência, a qual o levará a uma meta definida. Assim, você necessita encontrar por si mesmo esse ser constante, no qual não existe nem luta, e nem estagnação; e isto somente pode ser feito pela libertação da vida que está aprisionada, em uma prisão na qual vive todo o indivíduo.

Você só pode tornar o progressivo no eterno, dominando todo o incidente diário. A partir do momento que entender isto, você começará a se tornar seguro. Ninguém mais pode lhe guiar para essa certeza, ninguém pode lhe prestar assistência na extração da essência de toda a experiência, a não ser você mesmo. O eu não pode chegar ao eterno enquanto estiver prisioneiro das garras de todo incidente, que é o caso que se dá com cada ente humano. Jamais pode haver tranquilidade ou pleno conhecimento, sem o entendimento do eu, pois o entendimento do eu é conhecimento. Quando você compreender que, por meio de todo o incidente da vida, o eu progressivo absorve toda a parcela de experiência, somente disso nascerá a verdadeira autodisciplina. 

Na maioria dos casos é o medo que estimula a autodisciplina — medo do pecado, das convenções, medo do que os amigos, sociedades e comunidades possam dizer. Ou por meio da crença organizada, que é também uma causa de medo, você começa a se disciplinar. Isto, mais uma vez é errado, pois a partir do momento que exista um elemento de medo, este não pode conduzir à verdadeira autodisciplina. A disciplina imposta do exterior, não tem valor e não é eterna. Somente pelo entendimento, você poderá possuir a verdadeira autodisciplina. A autodisciplina deve nascer do amor à vida, pois que esse amor assegura a incorruptibilidade. De um tal entendimento, à luz do eterno, você começa a impor disciplina a si mesmo. Uma tal disciplina tem valor por não existir nela elemento de medo. Não se pode chegar à libertação, à perfeição da vida, senão por meio da autodisciplina, imposta sobre si mesmo com entendimento.

Em lugar de discutir tantas coisas desnecessárias e inúteis, que não têm valor, em lugar de disputar a respeito de gurus, cerimônias, crenças organizadas, que são teorias vagas, gostaríamos que você fizesse uma coisa que entendesse; e por esse entendimento sua visão integral da vida mudaria. A disciplina imposta a si mesmo, é seu único desenvolvimento: você desenvolverá sua mente e sua vida de maneira perfeitamente diferente da nossa, e, no entanto, o resultado será o mesmo, e sua auto-expressão não poderá entrar em conflito com a nossa.

A maioria concorda intelectualmente que é uma possibilidade; porém, não existe mudança no coração. Você não se acha em tristeza, na desgraça, na luta, consciente ou inconscientemente prisioneiro de irrealidades? Você desconhece sua própria tristeza. Ignora até que ponto é prisioneiro em sua cadeia, e, enquanto você não o souber, é inútil escutar sobre a verdade e a libertação. É necessária uma mudança no coração, e o modificar do coração deve proporcionar-lhe uma nova expressão da vida — e não uma teoria puramente intelectual. Deve haver completa cisão, você deve tornar-se um perigo para todas as coisas que estreitam, para todas as coisas que criam prisões. O que você está fazendo no presente? Somente balança as grades de sua prisão, pensando que por esse modo, os homens estão sendo libertados por você...

Sua inspiração, se a quiser, deverá ser o impulso, o entusiasmo para os modificar. Se você não se modificar, seu entusiasmo será destituído de valor, e você não poderá ter o mérito da persistência. Quando existir tal mudança de coração, existirá expansão — expansão por meio do entendimento, não por meio do medo — e à medida que você se expandir, estará completamente buscando beleza, tanto na forma como também na verdade, beleza nos fenômenos, bem como naquilo que todos os fenômenos criam. Assim, você modifica seu ambiente, suas roupas, a totalidade da vida.

Não estamos lhe falando de um ponto de vista superior, ou de uma atitude diferente de pensamento. Não estamos pregando coisa alguma que não tenha sido elaborado mentalmente, e que não se tenha lutado e feito sacrifícios para ser atingido. Falamos daquilo que experimentamos, e não se trata de uma revelação. Dizemos que o que atingimos, cada ente humano precisa atingir, não é unicamente privilégio nosso, isso porque todos estão em tristeza, todos lutam, todos buscam inspiração, todos tentam isto e aquilo, sacrificam, renunciam inutilmente, desnecessariamente, e sem entendimento. Existe a autodisciplina sem entendimento, a meditação, a concentração — todas essas coisas sem entender o significado da vida; e sem este entendimento, tudo o que você fizer, somente acrescentará o caos já existente, às lutas já existentes.

Em primeiro lugar você necessita compreender qual o significado, o propósito da vida e, desse entendimento, provirá a harmonia da razão e do amor. Por este entendimento, todas as coisas se tornarão claras, e você possuirá um imenso entusiasmo. Não falamos por busca de popularidade, dinheiro ou culto, pois essas coisas não têm significado para nós. Queremos entendimento, porque o entendimento muda por completo a visão da vida. Não queremos que você concorde, porque, na concordância não existe libertação; porém no entendimento existe a vida, existe mudança contínua, e desta, surge o êxtase, o entusiasmo, o desejo de alterar, e não meramente de enfeitar; de libertar as pessoas de sua prisão, pelo fato de estar você mesmo livre. O que mais é a vida, senão isto? Não desperdice todas as suas energias na discussão de coisas desnecessárias e inúteis, pois isto que falamos, resolve todas as suas dificuldades, como um unguento que cura todas as feridas. Quando você participa disso, significa que está mais interessado pelo que é morto do que pelo que é vivo.

Lembre-se da história de um homem que foi ferido por uma seta envenenada, e quis saber quem havia desferido a seta, por quem havia sido feita, que espécie de veneno havia sido empregado; e morreu enquanto fazia todas essas perguntas. É exatamente isto, o que você está fazendo. Você não quer viver, está mais interessado pela morte e pelo que se passa do outro lado. Porém, se você viver, o outro lado não existe, visto que o outro lado é somente a vida em continuação.

Assim, amigo, voltaremos no próximo ano ou no ano seguinte, com a mesma maneira de pensamento e você ainda estará prisioneiro da tristeza. Se duas pessoas entendessem isto, essas, para onde quer que fossem, modificariam, alterariam completamente o conjunto da vida e de suas circunstâncias, e se tornariam um aborrecimento, um perigo para tudo quanto fosse irreal que as rodeassem. Estariam combatendo constantemente contra essas coisas que são irreais, pois se acharem seguros de seu conhecimento, certificados dele: teriam confiança no que dissessem, por terem experimentado e atingido esse particular entendimento do qual falamos. 

A verdade não tem discípulos, crenças próprias, e você não tem que se tornar discípulo da verdade, porém ser a própria verdade. Isto é o amor da vida. Dele provém a razão, a inteligência, que é o resíduo da experiência; a simplicidade que é corruptível. Quando você entender o significado, o propósito da vida, então desaparecerão todas essas complicadas irrealidades que existem ao seu redor, e com esse desaparecimento, você estará vivendo uma nova vida — uma vida feita de realidade, uma vida com êxtase, um deleite contínuo em todas as suas expressões, por você ser a origem de todas as expressões, e não mais estar aprisionado pelas irrealidades da vida.

Krishnamurti no Acampamento da Estrela em Benares, novembro de 1929

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