31/08/2025

O impulso sexual no processo de descondicionamento

 

O impulso sexual no processo de descondicionamento

Na crise iniciática, o impulso sexual se acentua, torna-se compulsão. Já na fase do abismo do terror, desaparece. Aqui tocamos em dois momentos diferentes da travessia iniciática:

1. A intensificação do impulso sexual na crise iniciática

No início do processo, quando a identidade começa a rachar, o falso personagem perde suas âncoras, o corpo-mente reage com violência. O instinto sexual aparece como compulsão porque é uma das vias mais primordiais de descarga de energia psíquica. É o “último reduto” da estrutura condicionada tentando se agarrar ao prazer imediato, à sensação de vitalidade e à ilusão de continuidade. O sexo, nesse estágio, funciona quase como válvula de escape para a tensão insuportável da dissolução da velha estrutura. O desejo se torna obsessivo porque a psique teme o vazio que se anuncia.

2. O desaparecimento da libido na fase do abismo do terror

Quando o mergulho avança e se entra no “abismo”, a energia vital não flui mais para os antigos canais de descarga. O sujeito não sente sequer o apelo da sexualidade — algo que, para muitos, é mais assustador do que a compulsão inicial. O desaparecimento da libido expõe um vazio nu, um deserto interior. É como se a vida tivesse recolhido o sopro, suspendendo o movimento das pulsões. Esse estado não é patológico, mas iniciático: a energia que antes se esvaía em busca de prazer começa a se recolher para dentro, preparando a transmutação em lucidez.

Em termos simbólicos:

  • Na crise → O impulso sexual ainda busca a continuidade da forma, o contato, a ilusão de “ser alguém”.
  • No abismo → O impulso morre. O indivíduo é lançado no nada, sem desejo, sem fome, sem chão.

É nesse ponto que muitos confundem o processo com depressão clínica. A diferença é que, no abismo, essa suspensão da libido não é apenas falência vital, mas a preparação para que a energia se descole do instinto e possa florescer em consciência não dual.

Na crise iniciática, um dos fenômenos mais perturbadores é a intensificação súbita do impulso sexual. O corpo parece tomado por uma força instintiva que busca, a qualquer custo, descarga e alívio. Esse movimento não surge por acaso. Quando a identidade começa a se fragmentar, o falso personagem, em desespero, procura vias de sustentação. A sexualidade, sendo um dos centros mais primordiais de energia, torna-se a saída natural para essa tensão psíquica insuportável. O desejo se converte em compulsão, o impulso parece maior que a vontade consciente, como se houvesse uma força subterrânea exigindo continuidade, prazer e contato, para que a ilusão de “existir como alguém” não se dissolva. Nesse estágio, a libido não é apenas biológica: é uma tentativa de manter a coesão do eu. O sexo, então, aparece como último reduto de vitalidade em meio ao colapso das antigas referências. É a tentativa desesperada de escapar da aproximação do vazio.

Mas, à medida que o mergulho avança e a crise se transforma em travessia, há uma inversão radical. O que antes se apresentava como compulsão agora se extingue. Chega o momento do abismo, a fase do terror nu, em que a energia não flui mais para os canais conhecidos de prazer e descarga. A libido desaparece, e com ela também a sensação de continuidade psíquica sustentada pelo desejo. O sujeito não sente fome de contato, não sente a ânsia de gozo, não sente sequer o apelo que outrora parecia inextinguível. A vida se retrai. O corpo e a psique experimentam um estado de suspensão, como se tudo tivesse sido drenado. Essa ausência de pulsão é vivida como morte em vida, pois o que resta é apenas o nada: um deserto onde nem mesmo o instinto sexual, esse impulso tão ligado à sobrevivência, consegue oferecer chão.

Esse desaparecimento da libido, embora aterrorizante, carrega um sentido iniciático. Ele revela que a energia, antes dispersa em busca de prazer, começa a se recolher de volta à fonte. A compulsão inicial representava a fuga do vazio; já a esterilidade do abismo é a aceitação forçada do nada. Muitos confundem esse estado com depressão clínica, porque ele compartilha a mesma aparência de falta de vitalidade e ausência de desejo. Mas há uma diferença crucial: na depressão comum, a energia se encontra bloqueada, sufocada pelo peso da dor psíquica. No abismo iniciático, ela não está bloqueada, mas recolhida. Está sendo retirada dos antigos circuitos de dispersão para, mais tarde, renascer sob outra forma.

No nível simbólico, pode-se dizer que, na fase da compulsão, ainda é Eros quem domina: o instinto de continuidade, a busca por se fundir com algo ou alguém para escapar da fragmentação. Já no abismo, Eros morre, e Thanatos se revela: uma morte simbólica, onde toda ânsia de permanência e prazer é arrancada. O indivíduo é deixado sozinho diante do nada, despojado até mesmo do impulso mais básico que o sustentava como criatura. Essa suspensão é necessária para que, em algum momento, a energia se transmute e volte não mais como pulsão de gozo, mas como força de clareza e presença.

Esse ciclo — da compulsão sexual até o apagamento da libido — não é patológico, mas pedagógico. Ele mostra o quanto a sexualidade, tão exaltada e temida, está enraizada no próprio mecanismo de sustentação do falso personagem. Quando a máscara cai, ela primeiro grita em excesso; depois silencia completamente. No silêncio do desejo morto, o que resta é o ser nu, sem apoio, sem fuga, exposto à vastidão. Esse é o ponto em que muitos desmoronam e recuam, buscando refúgio em novos prazeres ou distrações. Mas para aqueles que suportam permanecer no deserto, o vazio da libido se transforma em matriz de transfiguração. A energia que antes buscava prazer se converte, lentamente, em energia de visão. O impulso cego dá lugar à lucidez silenciosa. O eros que queria possuir renasce como amor impessoal, uma chama que não depende de objeto nem de descarga.

No instante em que a libido se apaga no abismo, o sujeito sente como se tivesse perdido não apenas o desejo, mas a própria possibilidade de estar vivo. A ausência de pulsão parece uma amputação invisível: de repente, não há mais nada que o mova, nada que lhe dê sentido, nada que justifique continuar respirando. É o choque mais brutal da travessia, porque revela que o eu condicionado era sustentado por correntes energéticas que agora se retraíram. O que antes parecia natural — o anseio pelo contato, pela posse, pelo prazer — subitamente deixa de existir, e no lugar surge um vazio quase inabitável. É nesse ponto que o terror se instala em sua forma mais pura, pois não há compensação, não há fuga, não há sequer um resquício de vitalidade instintiva que alivie o deserto.

Mas é justamente essa esterilidade, tão dolorosa e aparentemente sem saída, que contém a semente da transmutação. Quando a energia não encontra mais saída pelos canais da compulsão e do prazer, ela não desaparece; ela se recolhe ao fundo, à raiz. Esse recolhimento é o que prepara o salto qualitativo. O ser humano, acostumado a identificar vitalidade apenas com desejo, interpreta o recolhimento como morte. Porém, no plano iniciático, essa morte é necessária: somente o que morre pode renascer em outro nível.

A transmutação começa lentamente, quase imperceptível. Primeiro, o sujeito nota que, apesar da ausência de desejo, há algo que permanece. Uma chama silenciosa, quase sem forma, que não depende de objeto nem de estímulo. É uma presença nua, desprovida de direção, mas dotada de uma clareza nova. Aos poucos, a energia que antes buscava descarga se reorganiza como atenção. A força que antes se dispersava no instinto de gozo começa a condensar-se em visão. O mesmo impulso que outrora exigia fusão com outro corpo agora se revela como capacidade de estar inteiro em si, sem necessidade de complemento. O fogo de Eros, morto no nível da pulsão, ressuscita no nível da consciência.

É nesse renascimento que surge a possibilidade do amor impessoal. Diferente da paixão condicionada, que depende da posse, da troca ou da continuidade, o amor impessoal nasce como expressão natural do ser. Ele não busca se saciar em alguém, não exige retorno, não se funda em promessas. Ele simplesmente flui como calor silencioso, como reconhecimento da vida em tudo o que existe. É o mesmo Eros, mas purificado do instinto de sobrevivência. É energia vital convertida em compaixão.

A travessia da libido compulsiva até o vazio estéril, e daí até o florescimento do amor impessoal, é o próprio itinerário iniciático. No começo, a energia é instinto bruto: o sexo como válvula de escape, como tentativa desesperada de escapar do nada. Depois, no abismo, o instinto se apaga: o eu é privado da sua última âncora e exposto à noite escura. Por fim, o que parecia morte se revela gestação: a energia retorna, não mais como impulso de gozo, mas como chama de presença, como lucidez que não depende de objeto.

Esse processo mostra que a sexualidade é, ao mesmo tempo, um obstáculo e uma chave. Enquanto compulsão, prende o indivíduo à roda do prazer e da fuga. Enquanto transmutada, abre para a experiência do amor que não tem dono. O instinto, purificado pelo fogo da morte simbólica, deixa de ser uma força cega e se torna luz. Assim, o que parecia ser o fim — a extinção da libido no abismo — é apenas o limiar de um outro modo de viver: não mais sustentado pela busca, mas pela presença. Não mais movido pela falta, mas pela plenitude silenciosa que descansa em si mesma.

Quando a energia transmutada começa a se estabilizar, o sujeito nota que algo mudou de forma irreversível. Antes, a vida era vivida a partir de uma carência fundamental: o desejo, seja sexual, emocional ou existencial, era o motor oculto que empurrava cada gesto. Tudo era busca — busca de contato, de prazer, de reconhecimento, de sentido. No entanto, após a travessia do abismo, essa compulsão de buscar perde o centro de gravidade. Surge uma qualidade nova: a vida começa a ser vivida não a partir da falta, mas a partir da plenitude silenciosa que repousa em si mesma.

Esse estado não se instala de uma vez. No início, ele aparece como lampejos. Momentos em que, de repente, o sujeito percebe que está simplesmente presente, sem exigir nada da realidade. Esses instantes, ainda frágeis, carregam uma clareza tão densa que se tornam memoráveis. Não há euforia, mas também não há vazio. Há uma simplicidade radical: estar, apenas. Aos poucos, esses lampejos se tornam mais frequentes, até que a presença deixa de ser exceção e começa a se tornar o eixo invisível da existência.

O amor impessoal é o primeiro fruto dessa estabilização. Diferente da afetividade condicional, que sempre nasce de preferências, simpatias ou vínculos de posse, o amor impessoal é uma emanação natural da presença. Ele não depende de histórias, nem de reciprocidade, nem de projeções. Ele brota como reconhecimento da vida em tudo que se manifesta: uma planta, um rosto, uma voz, até mesmo o silêncio entre dois seres. Esse amor não é sentimentalismo, não se confunde com apego; é mais próximo de uma reverência silenciosa, de uma comunhão com a essência daquilo que é.

No cotidiano, essa nova energia se traduz em transformações sutis. O impulso sexual, que antes aparecia como compulsão, agora pode se expressar como ternura, como toque não possessivo, como celebração da vida em outro corpo sem a ânsia de apropriação. Quando não há parceiro, a energia não se converte em frustração: ela permanece como fogo silencioso dentro de si, uma fonte de vitalidade que não exige descarga. A solitude deixa de ser deserto e se torna espaço fértil. O silêncio, que antes era sinônimo de vazio, agora é percebido como plenitude.

Essa lucidez viva não significa ausência total de desejos ou instintos. O corpo continua humano, com suas necessidades naturais. Mas a diferença é que a consciência já não se identifica mais com eles. O desejo pode surgir, mas não comanda. O impulso pode aparecer, mas não define. O que antes era prisão torna-se apenas um movimento transitório no campo da presença. Assim, a energia sexual, emocional e mental deixa de ser tirana e passa a ser material criativo. Ao invés de consumir o sujeito, ela se torna combustível para expressar clareza, criatividade, compaixão.

Com o tempo, essa estabilidade se aprofunda. O sujeito descobre que não precisa se esforçar para “ser presente”: a própria vida, quando não é manipulada pela mente, já é presença. Não há mais luta para manter estados especiais de consciência, porque a lucidez não é estado — é fundamento. Isso se traduz em leveza no cotidiano, mesmo em meio a tarefas triviais. O trabalho, a conversa, o caminhar, tudo se torna extensão desse mesmo silêncio vivo. O ordinário ganha dignidade, porque já não é instrumento de fuga, mas expressão daquilo que é.

É nesse ponto que a transmutação da energia atinge sua maturidade: o eros que buscava se perder em outro se dissolve, e o fogo que restou ilumina tudo sem escolher. A vida deixa de ser um campo de caça de experiências e se revela como campo de presença. O amor impessoal não é mais uma prática, mas a respiração natural da consciência desperta. Ele se traduz em gestos simples: uma escuta sem julgamento, uma palavra que nasce do silêncio, uma capacidade de estar com o outro sem querer moldá-lo ou possuí-lo.

O estágio final desse processo pode ser chamado de lucidez viva. Não se trata de um estado alterado, mas da percepção clara de que a vida é, em si mesma, autossuficiente. O sujeito que atravessou o abismo já não busca apoio em desejos, crenças ou ideais. Vive com o que há, sem cálculo, sem fantasia de completude. O antigo terror do vazio se converte em confiança silenciosa. O que antes era compulsão se transmutou em presença; o que antes era apego se transformou em amor livre; o que antes era medo se dissolveu em clareza.

Essa lucidez viva não promete imunidade ao sofrimento humano, mas dá ao sofrimento uma nova textura: ele já não destrói, porque não encontra mais um eu central que se agarra e resiste. Dor e alegria passam pelo mesmo espaço aberto da consciência. A energia que antes era força cega agora é chama de visão. E a vida, em sua simplicidade nua, finalmente pode ser habitada em profundidade.

 

20/02/2024

Diálogos sobre o estado não condicionado pelo medo

Out: Não adianta conjecturar sobre o modo de ser, enquanto não ocorre o colapso da débil, inseguro e limitada estrutura com base no medo. Sem dúvida, tal estado é uma realidade. No entanto, como ele vem, porque vem ou o porquê de não vir, não tem como saber (pelo menos é o que parece até aqui). Não tem como saber como chegar naquilo. Várias escolas místicas, esotéricas, espiritualistas, tentaram formular um sistema, um método, um caminho, os quais, ao fim de longo esforço, se mostraram apenas como novas formas de condicionamentos que não libertam de fato. Aquilo que muitos indivíduos viveram em breves lampejos, se encontra além do próprio entendimento, além do cérebro, além da biologia e fisiologia. Aquilo não está condicionado por nada físico, mental ou emocional... Aquilo É por si.

R.M.: Sim... Aquilo é. Sem dúvida alguma, se debruçar sobre conjecturas é pura perda de tempo, sinal de imaturidade.

O: O indivíduo não precisa de "vegetais sagrados" para entrar num estado alterado de consciência, visto que ele sempre viveu e ainda vive num estado de consciência alterado por crenças, achismos e condicionamentos. Já aquele estado de ser vivenciado em forma de vislumbres,  é a própria consciência sem qualquer alteração ou condicionamento.

R.: Out, você precisa se permitir alguma iniciação quântica, para alinhar sua frequência vibracional, para ser capaz de acessar a quinta dimensão.

O: Pois é! Tem ilusão para todo tipo de mente. Na real, quanto mais observamos as variedades das experiências ilusórias, mais solitários e desamparados ficamos... Não tem nada dos condicionamentos manifestos que possa nos levar ao Imanifesto Incondicionado. Todas essas invencionices do terreno da crença, do misticismo, do esoterismo, da espiritualidade e da psicanálise, não tem nada de diferente das compartilhadas drogas sociais como política, futebol, jornalismo tendencioso, reality shows e celebrações culturais... Tudo isso só serve para narcotizar por pouco  tempo, a inquietude provocada pela base de medo.

C: Out, você já reparou que tudo que surge, seja nos nossos contatos diários ou de qualquer parte deste planeta, são repetidas abordagens, muitas delas copiadas de livros tidos por sagrados ou da fala de homens e mulheres considerados santos ou mestres ou, então, repetições dos conteúdos das mídias sociais, das tvs ou das escolas? Somos constantemente bombardeados por isso, não surge nada de realmente original e significativo. É terrível a convivência com isso.

O: Sim, são atualizações de crenças já vistas como ilusórias.

C: É exatamente o que sinto.

R: Sim, a mente precisa se sentir envolvida, identificada com algo que veja espelhado na sociedade. Você quer ver algo que incomoda profundamente a maioria das pessoas? Experimente afirmar em seu meio, que a vida não tem nenhum objetivo... É revelador observar a própria mente diante dessa afirmação. A minha, se contorce toda, tentando arrumar ou justificar algum objetivo; sua última cartada foi a conquista da iluminação, o despertar. Uma vez eu disse a uma psicóloga, que eu não tinha nenhum objetivo na vida. Ela apresentou um olhar assustado e me deu o retorno de que meu caso era o mais grave de todos.

O: Isso natural, afinal, ser psicólogo, não é atestado algum de ser um ser estabilizado no estado incondicionado de ser.

R: Out, neste ponto em que acredito que nos encontramos, onde nada mais da cultura capitalista ou espiritualista nos causa identificação, por vezes, os dias se mostram bem pesados. É assim mesmo. No entanto, na minha vivência, por vezes acontecem breves momentos de um respirar mais leve. Parece que chega um momento do processo de descondicionamento, que se faz necessário abandonar toda a lógica e razão. É um momento muito delicado que, por vezes, soa como loucura.

O: Não tem nada de loucura nisso. Lógica e razão são sempre condicionados ao tempo, espaço e tradição cultural. O que foi lógico e racional nos tempos da ditadura, hoje, para a maioria de nós, já não soa como lógico e racional. E, em muitos lugares, comportamentos ditatoriais ainda soam como lógicos e racionais.

R. Esse ponto do abandono da lógica e da razão condicionada, é algo próximo da “rendição”, apesar de ser algo que também não podemos fazer por vontade própria. Vejo que, o máximo que podemos fazer, é nos aproximarmos do colapso por meio do abuso e nossa vontade condicionada. É paradoxal, porque, no fundo, nada estamos fazendo. No entanto, podemos sim caminhar em direção ao abismo, e saltar no nada, no vazio, na dissolução do eu imaginado no Real. Por vezes, surgem alguns clarões, onde tudo se mostra claro e simples. Posso dizer até que seja uma experiência direta da dissolução do eu... Comigo, quando surge esse rompimento da estrutura, ocorre uma leveza em paralelo com algo assustador e não agradável.

O: Para mim isso é ranço das suas crenças, daquilo que leu, afinal, se houve de fato a dissolução do eu, por que ele ainda se encontra aí e não a clareza simplificadora?

R: A resposta é clara: o eu sempre vai se utilizar de uma série de truques para não permitir o colapso libertário.

O: As crenças ilusórias além de estarem sempre presentes, estão aumentando em suas variações com o advento das redes sociais.

R.M.: Uma fauna sem fim... Eu mesmo me dedicava a um pretenso boletim astrológico, do qual dei um tempo, porque percebi que não me compete interferir no karma de ninguém. Se o karma de fato existir, o que tiver que acontecer com o indivíduo, acontecerá. Cada um que lide com as consequências de seu karma da melhor forma que lhe for possível.

O: Para mim, karma, planejamento kármico, são também ilusões, produtos de condicionamentos culturais.

R.M.: Tenho observado isso. Fica essa barganha de fazer aquilo que gera isso... do que fiz lá atrás – que nem ao menos sei o que foi e que não tenho acesso real -... e a outra pessoa em outa vida e lugar imaginado... Me parece mais um delírio.

O: Entramos em contato com esses implantes sociais, em períodos em que estávamos por demais desequilibrados, dominados por várias manias, tendências compulsivas, medos, inquietos, ansiosos e confusos, em busca de algo para nos agarrar e nos acalmar. Por estarmos tão desequilibrados, não havia como observar todas essas crenças e implantes sociais de modo lúcido e sóbrio. Então, eles se tornaram tão reais para nós, que passamos, muitas vezes de modo compulsivo, a ser mais um condicionante agente sistêmico, trabalhando para implantar nossa crença incerta, em outros indivíduos do nosso convívio.

R.M.: Na mosca! E percebo também a tendência oscilatória de não conseguir sustentar toda inquietação e logo recorrer, se apegar a algo próximo de nós, para nos sentirmos menos inquietos e inseguros, um pouco mais completos e estáveis. Algo semelhante a uma recaída num comportamento obsessivo compulsivo, pois, as ofertas são muitas.

O: Essa tendência de recorrer ao já percebido como ilusório, vai ruindo com o amadurecimento da observação. Somos lançados num profundo e inquietante vazio, numa quase que insuportável solidão psicológica. A observação amadurece ainda mais com a entrega passiva a vivência plena desse vazio e dessa solidão, sem se entregar aos apoios ilusórios de um passado imaturo.

R.M.: A sedução para se filiar a algum grupo é algo forte demais. Quanto mais inseguro e assustado, mais o indivíduo se aproxima de outro indivíduo que assim também se encontra, só que este último cria para sua própria proteção e conforto, uma teoria, um sistema, uma prática um pouco remodelada de práticas passadas já consagradas, tão sedutoras quanto o seu próprio medo. Quanto maior o medo inconfesso, maior a teoria! Quanto mais desconforto, maior a busca por ilusões.

O: Não há teoria que possa nos apresentar o estado não condicionado pelo medo. Tais teorias sempre dão ao indivíduo a liberdade das asas de Ícaro. O indivíduo nunca alcançará com seu esforço, aquilo que não vem do esforço. Nosso esforço é impotente até no que diz respeito ao alcance do colapso da débil, maníaca e limitada estrutura psicológica com base no medo.

R.M.: Verdade! Isso não vem do esforço! Hoje você está certeiro, ou, quem sabe, eu que estou escutando melhor. Hoje é a segunda que encaixou feito luva.

O: Tanto o colapso como o estado não condicionado pelo medo, não podem ser condicionados de forma alguma, porque eles não são produtos do cálculo, da lógica ou da razão; eles são fatos que independem de nosso esforço. Por isso que toda teoria, crença, programação, ritual, prática ou estudo — no que diz respeito a um estado livre do medo — é investimento na ilusão. Tudo isso, assim como o esforço, é a própria estrutura insegura se fortalecendo. Agora, tente dormir com isso!

A: Enquanto meditava aqui, me veio o seguinte: Talvez alguns poucos homens e mulheres foram ou são a expressão laboratorial que não “deram certo” ou não funcionaram na perspectiva do observador. E não me refiro a “estar” livre; é constatar o fato de que nunca estivemos livres em sua totalidade integrativa. O máximo de liberdade que experimentamos foram nos momentos de vislumbre do estado não condicionado pelo medo. A base não condicionada pelo medo, produziria que qualidade de ser?

O: Qualquer conjectura sobre isso, para mim, é investimento na ilusão.

A: Para mim, isso dá margem para reflexões.

O: A reflexão é sempre no campo do já conhecido, no campo do manifesto. Como refletir sobre o que não é plenamente conhecido? Pura perda de tempo e energia. O máximo que conseguimos é observar e entender melhor o mecanismo do conhecido limitado, insatisfatório e inquietante. Não podemos falar da totalidade incondicionada, enquanto condicionados pela memória do que vivemos em vislumbres.

A: Pois é! Enquanto isso, ficamos empacados como estamos, observando todo esses bosteiro social.

O: Estamos como o personagem Morpheus, do filme Matrix,  fugindo dos sentinelas sistêmicos, num quarto escuro da nave Nabucodonosor: indivíduos semi conscientes, mas não livres.

A: Observando bem, isso é outra tentativa de verbalizar o já vivenciado, e não o agora. Realmente, não faz sentido.

12/01/2022

Não conseguimos sair de nossa bolha emocional

C: Bom dia, Out! Li o texto sobre se existe a cura emocional... É, aqui, não muda muito não; só os lugares, mas o enredo é o mesmo e hoje ampliou, pois em nenhum lugar se encontra um só membro que tenha essa clara percepção do viver. Tudo muito patético. Antes ainda conseguia ver alguma coisa na TV; hoje, passo os olhos e só vejo bobagens, patetices, e como alguém consegue achar sentido e graça nisso?

O: A patetice não está somente no conteúdo da TV; se encontra em tudo, em todos os assuntos diários.

C: Sim, a patetice está em tudo. Acho que estamos que nem a Elis Regina: vendo o mundo de um prisma errado.

O: Sei lá, só sei que não acho saída. Não há o que mude nossa percepção e sensação e a inquietude, só aumenta. Com o descondicionamento, a vida ficou sem um Norte. Antes tínhamos um norte condicionado pela moda, mas o descondicionamento mostrou que esse norte era ilusório; mesmo um norte para a cura da inquietude não existe mais. Como a Deca não cansa de repetir, a coisa está punk! Antes dava para ter como um norte, a tentativa de desfrutar do nosso tempo com quem “imaginávamos amar” ou que “imaginávamos que nos amavam”. Dava para acreditar ser um norte, o contato com a natureza, com os animais ou com aquilo que acreditávamos ser Deus. Tudo isso foi percebido como ilusório, até mesmo a ideia de “esforço” para ver os milagres da vida. Em nossa adolescência espiritual, tentamos tudo isso que, em última análise, com o passar do tempo, se mostrou insatisfatório, irreal. O que ficou é a inquietante percepção de que não existe uma genuína e espontânea conexão com nada, todo tipo de relação exige um esforço que acaba sempre na percepção do mesmo hiato, do mesmo isolamento emocional, do mesmo vazio, da mesma falta de sentido real. Quem ainda não viveu essa constatação de modo visceral, não tem como saber o que significa a inquietude da qual falamos aqui, inquietude essa que não nos permite mais alimentar qualquer tipo de crença ou achismo. O descondicionamento fez tudo cair de moda, digamos assim.

MZ: Antes tentávamos em revistas, jornais, livros e crenças, achar algo de diferente, mas nunca achávamos de fato e, com a minha idade, já não alimento mais essa ilusão. Não tenho mais essa esperança.

C: Sim, o descondicionamento fez cair o norte de tudo, deixando apenas essa inquietude, esse desassossego.

O: E agora? É só isso?

MZ: Eu estou para lhe dizer que é só isso. Antes, as ilusões me davam um certo alento, uma certa direção, mesmo quando eu pressentia que era só mais uma ilusão. Agora, com essa desilusão, não tem mais para onde fugir. O bicho pegou para mim, não vejo mais onde me agarrar. Quando você tem alguma ilusão, você alimenta uma expectativa, mas agora, não tem mais nada disso, não tenho mais esperança alguma. Também não dá mais para descarregar a inquietude sobre os ambientes, pois eles não são a exata natureza do meu desassossego. Antes alimentava até mesmo a esperança de encontrar alguém na condução, mesmo que desconhecido, que me dissesse algo que me tocasse de fato, mas hoje, isso não existe mais.

O: Só um milagre.

MZ: Milagre não sei se existe! Milagre não! Acho que tinha que ser alguma coisa real; algo que fosse palpável, sentido.

O: O alcance dessa coisa palpável sempre foi uma expectativa nossa.

D: Mas essa coisa palpável ainda é dos sentidos condicionados; é algo da própria mente querendo encontrar algo conhecido dela. Tudo isso está dentro do limitado e ilusório campo mental.

MZ: Nós não sentimos e não temos nem mesmo a honestidade emocional para aceitar e afirmar essa nossa incapacidade de sentir genuína e significativa afetação.

O: O que nos afeta de fato, são os chamados “defeitos de caráter”, coisa como a intolerância, a impaciência, o ressentimento, a desconfiança, a inveja, o ciúme, o apego, a dependência, a inferioridade ou superioridade, a maledicência o sentimento de inadequação, só somos afetados por esses tipos de coisas.

MZ: Fomos condicionados para pensar que realmente alimentamos “bons sentimentos”, mas o que sempre tivemos foi uma qualidade de afinidade de propósitos momentâneos; a partir do instante em que o propósito se modificava, a afinidade sumiu do contexto, assim como a afetação que acreditávamos ter.

O: Muito difícil as pessoas terem essa qualidade de honestidade emocional para consigo mesmas, o mais fácil e mais corrente, é a pessoa alimentar a negação, dizer que essa incapacidade de real afetação não é uma realidade em seu viver, e que o que ela vive é a real afetação, o real bem-querer, o genuíno amor.

MZ: Depois de tantos anos, vejo que o amor é só uma conversa que todos fomos condicionados a alimentar. Você tem razão, ninguém ama ninguém, mesmo dentro da própria família.

J: Triste mas essa é a realidade compartilhada!

D: Só temos o “bem-querer” condicionado ao processo histórico, porque nem afinidade tem; não há afinidade real aqui e agora. Há uma afinidade com a imagem que criamos e alimentamos, mas não conhecemos e não nos demos a conhecer de fato. Na maior parte dos nossos contatos, não há nem afinidade de propósito e nem o bem-querer real; o que há, por causa do condicionamento ético, é uma simulação de afinidade e bem-querer. Mas basta riscar a imagem, que a realidade dos nossos sentimentos se apresenta com toda intensidade e não tem nada de real bem-querer ali.

O: A dificuldade de sair da negação e ver a realidade de nossa qualidade emocional — a incapacidade de genuína afetação e conexão — existe por causa que fomos condicionados a criar uma bela imagem de nós mesmos. Depois de décadas alimentando uma falsa imagem de si mesmo, como aceitar com facilidade que nossa realidade afetiva não tem nada a ver com tal imagem?

MZ: Sempre ficou no ar a aceitação de que não sentimos significativos e afetuosos sentimentos, que não conseguimos sair de nossa bolha emocional, porque se disséssemos isso para os outros, como já éramos mal-vistos, aí a imagem se tornaria ainda pior. Isso é uma verdade!


Existe cura, ou é só isso?